Introdução
A dor neuropática crônica é uma das condições mais desafiadoras no manejo clínico da dor. Surge a partir de lesões ou disfunções do sistema nervoso central ou periférico, resultando em sintomas como queimação, formigamento, alodinia (dor ao toque leve) e choques elétricos.
Afeta milhões de pessoas no mundo, com alta prevalência em doenças como neuropatia diabética, neuralgia pós-herpética, esclerose múltipla, lesão medular e dor de membro fantasma.
Apesar das opções terapêuticas disponíveis — antidepressivos tricíclicos, anticonvulsivantes e opioides —, mais de 40% dos pacientes permanecem refratários ao tratamento convencional (Finnerup et al., Lancet Neurology, 2021).
Diante desse cenário, o canabidiol (CBD), um fitocanabinoide não psicoativo da Cannabis sativa, vem sendo estudado por seu potencial analgésico, ansiolítico e anti-inflamatório, com perfil de segurança favorável.
O Sistema Endocanabinoide e a Dor Neuropática
O sistema endocanabinoide (SEC) é um importante modulador da dor. Ele é composto pelos receptores CB₁ (no sistema nervoso central), CB₂ (em células imunes e gliais), endocanabinoides (anandamida e 2-AG) e enzimas de degradação (FAAH, MAGL).
Em estados neuropáticos, ocorre disfunção do SEC, com redução da atividade endocanabinoide e aumento da neuroinflamação. O CBD atua restaurando esse equilíbrio, modulando tanto vias neuronais quanto inflamatórias.
📘 Referência:
- Fine & Rosenfeld, Clin J Pain, 2013 — descrevem o SEC como alvo terapêutico na dor crônica.
Mecanismos de Ação do CBD na Dor Neuropática
O CBD exerce seus efeitos por múltiplos mecanismos não apenas via receptores canabinoides, mas também em receptores e canais envolvidos na dor neuropática:
🔹 1. Receptores TRPV1 (“Receptores de Capsaicina”)
O CBD ativa TRPV1, envolvidos na percepção de dor térmica e queimação, levando a dessensibilização e analgesia em uso contínuo.
📘 Campos et al., Br J Pharmacol, 2012
🔹 2. Receptores 5-HT1A (Serotoninérgicos)
A ativação dos receptores 5-HT1A contribui para o efeito ansiolítico e modulador do humor, reduzindo a hiperexcitabilidade neuronal e melhorando o limiar de dor.
📘 Russo, Front Integr Neurosci, 2018
🔹 3. Receptores PPAR-γ
O CBD estimula PPAR-γ, reduzindo a neuroinflamação e citocinas pró-inflamatórias (IL-6, TNF-α), implicadas na manutenção da dor neuropática.
📘 Esposito et al., Eur J Neurosci, 2011
🔹 4. Modulação da Glia
Em modelos neuropáticos, o CBD inibe a ativação microglial e astrocitária, reduzindo liberação de citocinas inflamatórias e neurotoxicidade.
📘 Mori et al., Neurotherapeutics, 2017
Esses mecanismos combinados tornam o CBD um agente multimodal, atuando na hiperexcitabilidade neuronal, inflamação e ansiedade associada à dor crônica.
Evidências Científicas: Estudos Pré-Clínicos e Clínicos
🔬 1. Estudos Pré-Clínicos
- Ward et al. (2014), Pain
Em modelo de neuropatia por lesão do nervo ciático, o CBD reduziu alodinia mecânica e hipersensibilidade térmica de forma dose-dependente, sem sedação ou tolerância. - Costa et al. (2017), Eur J Pain
O tratamento com CBD oral reduziu marcadores de neuroinflamação e hipersensibilidade em modelo de dor neuropática induzida por quimioterapia. - Huang et al. (2019), Mol Pain
O CBD modulou microglias ativadas, diminuindo expressão de TNF-α e IL-1β, sugerindo efeito neuroprotetor.
📌 Conclusão pré-clínica: O CBD reduz a dor neuropática, a inflamação e a sensibilização central sem causar tolerância ou efeitos psicoativos.
👩⚕️ 2. Estudos Clínicos
- Xu et al. (2019), Frontiers in Pharmacology
Revisão sistemática de 16 estudos clínicos mostrou que canabinoides, especialmente CBD + THC, reduziram dor neuropática moderada a severa, com segurança aceitável. - De Vita et al. (2022), Pain Medicine
Revisão focada em CBD isolado demonstrou redução significativa da dor e melhora do sono em pacientes com neuropatia diabética e neuralgia pós-herpética. - Vigil et al. (2020), J Pain Research
Em estudo observacional com 430 pacientes, o uso de óleo rico em CBD (≥20:1 CBD:THC) reduziu em 32% a intensidade da dor neuropática e melhorou qualidade do sono.
📘 Apesar da heterogeneidade metodológica, as evidências convergem: o CBD pode ser eficaz como adjuvante, principalmente em pacientes refratários aos tratamentos convencionais.
Comparação com Terapias Convencionais
| Tratamento | Mecanismo | Efeitos adversos | Eficácia em dor neuropática | Potencial de combinação |
|---|---|---|---|---|
| Antidepressivos (Duloxetina) | Inibição de recaptação de serotonina/noradrenalina | Náusea, insônia, boca seca | Moderada | Boa |
| Anticonvulsivantes (Gabapentina) | Inibição de canais de cálcio | Sonolência, ganho de peso | Moderada | Boa |
| Opioides | Agonismo µ-opioide | Tolerância, constipação | Variável | Limitada |
| CBD | Modulação multimodal (TRPV1, 5-HT1A, CB2) | Leves (sonolência, boca seca) | Promissora | Excelente |
O CBD apresenta perfil multimodal e seguro, podendo ser combinado a antidepressivos e anticonvulsivantes sob supervisão médica.
Segurança e Efeitos Adversos
O CBD possui ótimo perfil de segurança:
- Efeitos comuns: fadiga leve, sonolência, boca seca
- Sem risco de psicoatividade ou dependência
- Potenciais interações: com antidepressivos, anticoagulantes, anticonvulsivantes (metabolismo via CYP450)
- Contraindicações: gestação, lactação e uso em menores sem supervisão médica
📘 WHO, 2018: Relatório oficial afirma que o CBD é seguro, bem tolerado e não apresenta potencial de abuso.
Aplicação Clínica e Posologia
A posologia ideal deve ser individualizada conforme gravidade da dor, comorbidades e experiência prévia com canabinoides:
- Início: 5–10 mg/dia (CBD oral)
- Titulação gradual: aumento a cada 3–5 dias conforme resposta clínica
- Faixa terapêutica usual: 20–100 mg/dia
- Formas de uso:
- Óleos sublinguais (início lento, efeito duradouro)
- Cápsulas orais
- Tópicos (géis, cremes) para dor localizada
- Formulações isoladas (CBD puro) ou balanceadas (CBD:THC 20:1)
📘 O princípio clínico é “start low, go slow”, garantindo eficácia e segurança.
Conclusão
O canabidiol (CBD) representa uma alternativa terapêutica promissora e segura no manejo da dor neuropática crônica, especialmente em pacientes refratários aos tratamentos convencionais.
Com base em múltiplos mecanismos de ação, incluindo modulação de TRPV1, 5-HT1A e CB₂, o CBD reduz hiperexcitabilidade neural, neuroinflamação e ansiedade associada à dor crônica.
As evidências pré-clínicas e clínicas demonstram melhora significativa da dor e qualidade de vida, com baixo risco de efeitos adversos.
Ainda são necessários ensaios randomizados de longo prazo para padronizar doses, formulações e protocolos clínicos.
Para médicos e profissionais de saúde, o CBD deve ser considerado como parte de um plano terapêutico integrado, respeitando a legislação vigente, com acompanhamento regular e monitoramento de resposta e segurança.
📚 Referências Selecionadas
- Ward SJ, et al. Pain. 2014;155(10):2174-2184.
- Costa B, et al. Eur J Pain. 2017;21(6):953-962.
- Xu DH, et al. Front Pharmacol. 2019;10:1042.
- De Vita MJ, et al. Pain Medicine. 2022;23(2):319-330.
- Vigil JM, et al. J Pain Res. 2020;13:2599-2611.
- WHO. Cannabidiol (CBD) Critical Review Report. Geneva, 2018.
- Finnerup NB, et al. Lancet Neurology. 2021;20(5):391-402.

