Nos últimos anos, muito se falou sobre o papel da microbiota intestinal — o conjunto de bactérias, vírus e fungos que habitam o trato gastrointestinal — em doenças autoimunes. Entre elas, a esclerose múltipla (EM) tem recebido destaque, levantando a questão: será que alterações na flora intestinal poderiam influenciar o risco de desenvolver EM ou até mesmo sua evolução clínica?
O eixo intestino–cérebro–imunidade
O intestino não é apenas um órgão digestivo: é um verdadeiro órgão imunológico, com milhões de células imunes em contato constante com microrganismos.
- A microbiota intestinal participa na educação do sistema imune desde cedo.
- Produz metabólitos, como ácidos graxos de cadeia curta (butirato, propionato), que modulam a atividade de células T reguladoras e pró-inflamatórias.
- Disbiose (alteração na composição da flora) pode favorecer inflamação sistêmica e atravessar o eixo intestino–cérebro, impactando a neuroinflamação.
O que mostram os estudos em Esclerose Múltipla?
1. Alterações da microbiota em pacientes com EM
Diversos estudos comparativos mostraram diferenças consistentes na composição da microbiota de pessoas com EM:
- Redução de bactérias produtoras de butirato (como Faecalibacterium prausnitzii).
- Aumento de bactérias pró-inflamatórias (como Akkermansia muciniphila e Methanobrevibacter smithii).
Essas mudanças parecem associar-se à maior ativação de células Th17, envolvidas na patogênese da EM.
2. Evidência em modelos animais
Em modelos de encefalomielite autoimune experimental (EAE), transferência de microbiota de pacientes com EM para camundongos germ-free agravou a doença comparado a microbiota de indivíduos saudáveis. Isso sugere um papel causal de certos microrganismos.
3. Ensaios clínicos em humanos
Os dados ainda são iniciais:
- Probióticos: pequenos ensaios mostraram que formulações com Lactobacillus e Bifidobacterium reduziram marcadores inflamatórios e melhoraram parâmetros clínicos e de qualidade de vida em pacientes com EM remitente-recorrente.
- Dieta: padrões alimentares ricos em fibras, vegetais e ácidos graxos ômega-3 parecem favorecer uma microbiota mais “anti-inflamatória”, mas os estudos são observacionais.
- Transplante fecal (FMT): há relatos de caso e séries iniciais sugerindo segurança e possíveis benefícios, mas faltam ensaios randomizados.
Limitações e lacunas
Apesar do entusiasmo, é importante destacar que:
- A microbiota é altamente variável entre indivíduos, influenciada por genética, dieta, ambiente e uso de antibióticos.
- Muitos estudos têm amostras pequenas e metodologias heterogêneas.
- Ainda não se sabe se as alterações observadas são causa ou consequência da doença e do uso de imunomoduladores.
- Não há protocolo padronizado de probióticos, dietas ou FMT para EM com evidência robusta.
Perspectivas futuras
A pesquisa caminha em direção a:
- Identificação de “assinaturas” microbianas associadas a risco ou atividade da EM.
- Desenvolvimento de probióticos de nova geração ou metabólitos sintéticos (como ácidos graxos de cadeia curta) como terapias adjuvantes.
- Ensaios clínicos randomizados, de longa duração, para avaliar eficácia real de intervenções que modulam a microbiota.
Conclusão
A relação entre microbiota intestinal e esclerose múltipla é um dos campos mais promissores da neuroimunologia atual.
- Realidade: existem alterações consistentes na microbiota de pacientes com EM, com plausibilidade biológica e apoio de modelos animais.
- Mito (ainda): afirmar que modulando a microbiota já podemos tratar ou modificar a evolução da EM. Para isso, precisamos de ensaios clínicos robustos e protocolos padronizados.
Referências selecionadas
- Cekanaviciute E, et al. Gut microbiota in multiple sclerosis: the role of bacteria and the immune system. Nat Commun. 2017.
- Berer K, et al. Gut microbiota from multiple sclerosis patients enables spontaneous autoimmune encephalomyelitis in mice. Nature. 2017.
- Katz Sand I, et al. Altered gut microbiota in multiple sclerosis and potential roles in pathogenesis. Curr Neurol Neurosci Rep. 2018.
- Tankou SK, et al. Probiotic supplementation in patients with multiple sclerosis: a randomized, double-blind clinical trial. Mult Scler J. 2018.
- Makkawi S, et al. Gut microbiota and multiple sclerosis: current status and future directions. Autoimmun Rev. 2022.

