Esclerose Múltipla e Tratamentos com Cannabis / Canabinoides: Estado da Arte Científico

Resumo (TL;DR):
A Esclerose Múltipla (EM) é uma doença neuroimune crônica caracterizada por desmielinização e degeneração neuronal, com sintomas como espasticidade, dor neuropática, espasmos musculares, distúrbios do sono, fadiga. Há evidência moderada a forte de que canabinoides — particularmente a formulação oromucosal nabiximols (THC:CBD) — são eficazes como terapia adjuvante para reduzir espasticidade refratária em pacientes com EM. Também existem sinais de benefício para dor neuropática. Mecanismos possíveis incluem modulação do sistema endocanabinoide, efeitos anti-inflamatórios, modulação de neurotransmisores excitatórios/inibitórios. Contudo, os ensaios variam bastante em qualidade, doses, medidas de desfecho; efeitos adversos são moderados; e são necessárias mais pesquisas para definir dose ideal, iniciar tratamento, efeitos a longo prazo, e impacto em progressão da doença.


1. Esclerose Múltipla: Contexto clínico e sintomatologia relevante

  • A EM é uma doença autoimune central, com inflamação, destruição da mielina, glioses, lesões axonais. Variantes clínicas: remitente-recorrente (RRMS), progressiva primária ou secundária.
  • Sintomas incluem: espasticidade (uma das mais incapacitantes), espasmos musculares, dor neuropática, disfunção vesical/intestino, fadiga, distúrbios do sono, rigidez, fraqueza motora.
  • Os tratamentos de modificação da doença (TMDs) controlam surtos e retardam progressão em muitos casos, mas muitos sintomas persistem, especialmente os sintomas motores e de espasticidade, que nem sempre respondem bem aos antiespásticos clássicos (baclofeno, tizanidina, etc.).

2. Sistema canabinoide no sistema nervoso: mecanismos plausíveis para efeitos em EM

Para entender o efeito da cannabis / canabinoides na EM, vários mecanismos biológicos plausíveis são importantes:

  • Receptores CB1 e CB2: CB1 abundante nos neurônios centrais, modula transmissão excitadora/inibitória (glutamato, GABA); CB2 mais em células imunes e microglia, papel de regulação da inflamação.
  • Efeitos anti-inflamatórios: canabinoides podem reduzir citocinas pró-inflamatórias (IL-1β, TNF-α, IL-6), diminuir infiltração de células imunes no SNC, reduzir ativação microglial e astrocítica.
  • Neuroproteção: redução de estresse oxidativo, preservação de neurônios e axônios, possível modulação de apoptose.
  • Modulação de neurotransmissão: efeito sobre espasticidade via relaxamento muscular por diminuição de excitabilidade motora; supressão de espasmos.
  • Efeitos sobre dor neuropática: modulação de vias de dor central (neuronas nociceptivas, glia), possivelmente via CB1/CB2, moduladores de canais iônicos.

3. Principais formulações / compostos estudados

  • Nabiximols (spray oromucosal THC:CBD, proporção aproximadamente 1:1), comercialmente conhecido como Sativex® em muitos países.
  • Extratos combinados de THC + CBD, formulados de diferentes maneiras (spray, óleos, etc.).
  • THC isolado ou formulações sintéticas.
  • CBD isolado — estudos menores; mecanismo antiinflamatório e analgésico experimental.

4. Evidência clínica em espasticidade na EM

4.1 Meta-análises e revisões

  • Uma meta-análise recente (“Cannabinoids for spasticity in patients with multiple sclerosis: A systematic review and meta-analysis”, Azadvari et al., 2024) avaliou 31 estudos, com seis ensaios randomizados. O uso de canabinoides, especialmente nabiximols, mostrou eficácia para espasticidade associada à EM. SAGE Journals
  • Outra meta-análise (“Nabiximols is Efficient as Add-On Treatment for Patients with Multiple Sclerosis Spasticity Refractory to Standard Treatment”) incluiu 7 ensaios randomizados, ~1.128 pacientes; resultado: responder (redução em escala NRS de espasticidade) significativamente maior no grupo nabiximols vs placebo, com OR ~2,41 (95% CI: 1,39-4,18). eurekaselect.com+1

4.2 Ensaios randomizados chave e estudos de prática clínica

  • Effect of Nabiximols on Muscle Strength and Spasticity (GWMS0106, GWSP0604, SAVANT trials): em ensaios com pacientes com espasticidade que não respondiam bem a medicamentos convencionais, nabiximols reduziu espasticidade medida por escala subjetiva (NRS) sem causar queda significativa de força muscular ou da habilidade de caminhada em muitos casos. Neurology
  • Observações neurofisiológicas: em pacientes com EM progressiva secundária, uso de spray THC:CBD melhorou escores de espasticidade, dor, e prolongou o cutaneous silent period (CSP) — medida neurofisiológica que pode refletir modulação da excitabilidade espinhal. PubMed

4.3 Estudos observacionais

  • Estudo retrospectivo clínico com ~50 pacientes tratados com THC/CBD inalatórios para espasticidade e dor: mostrou benefício subjetivo em muitos casos para espasticidade, embora variabilidade alta nas respostas e nas doses. PubMed
  • Estudos de extratos de planta inteira THC+CBD: revisão sistemática de seis estudos mostrou tendência de redução da espasticidade em pessoas com EM, medido subjetivamente; medidas objetivas menos consistentes. BioMed Central

5. Evidência clínica em dor, qualidades de vida e sintomas relacionados

  • Revisão Cannabinoids for Treatment of MS Symptoms: State of the Evidence concluiu que nabiximols, extrato oral de cannabis e THC sintético são provavelmente eficazes para reduzir dor neuropática em EM. PubMed
  • Também há relatos de melhoria em sono, espasmos musculares (espasmos que ocorrem independentemente da espasticidade tônica), qualidade de vida global.

6. Limitações dos estudos e resultados negativos

Nem todos os estudos encontraram benefício estatístico ou clínico significativo, especialmente quando se usam medidas objetivas:

  • Estudo recente (2024) randomizado, duplo-cego, placebo-controlado, comparando nabiximols vs placebo em medidas clínicas de espasticidade e força muscular (escalas MAS [Modified Ashworth Scale], testes de caminhada). Nesse estudo, o endpoint primário não foi alcançado: mudanças em MAS e outros testes entre nabiximols e placebo não foram significativamente diferentes. PubMed
  • Ensaio “Cannabis-Based Medicine for Neuropathic Pain and Spasticity …” (Dinamarca, pacientes com EM ou lesão de medula) mostrou que nem THC, nem CBD isolados, nem a combinação, produziram diferença significativa em dor ou espasticidade em comparação com placebo, após 6 semanas. PubMed

Esses resultados negativos chamam atenção para o fato de que:

  • resposta depende de como se mede espasticidade → subjetiva vs objetiva;
  • dosagem, duração do tratamento, formulação (spray, óleo, etc.) são variáveis críticas;
  • perfil do paciente: tipo e estágio da EM, gravidade dos sintomas, tolerância a efeitos adversos.

7. Segurança, tolerância e efeitos adversos

  • A evidência acumulada de mais de 15 anos com nabiximols mostra que ele é relativamente bem tolerado como terapia adjuvante para espasticidade e dor em EM. A revisão “Safety and tolerability of nabiximols …” coletou dados de muitos RCTs e estudos abertos; principais eventos adversos: tontura, fadiga, boca seca, náuseas. Taxa de descontinuação variou, mas em espasticidade moderada foi menor do que em outros tipos de dor crônica. PubMed
  • Importante: efeitos psicoativos do THC (diz-se ansiedade, alteração cognitiva, efeitos sobre humor), risco de sedação, risco de quedas — especialmente em pacientes com fraqueza ou comprometimento motoro.

8. Onde ainda há lacunas: necessidades de pesquisa

Vários aspectos ainda precisam ser esclarecidos:

  1. Dose ótima, regime e duração: qual dose de THC:CBD, por quantas semanas, titulação ideal, quando iniciar tratamento adjuvante.
  2. Medidas de desfecho objetivas vs subjetivas: reconhecimento de que escalas subjetivas (NRS, auto-relato) frequentemente mostram efeito, mas escalas objetivas (MAS, testes de força, caminhada) às vezes não confirmam.
  3. Tipo de EM, estágio e fenótipo: se pacientes com EM progressiva respondem diferente da remitente, se a duração da doença interfere, se a carga de lesões ou o grau de espasticidade inicial predispõe a resposta.
  4. Efeitos a longo prazo: segurança, tolerância (uso continuado pode levar a redução do efeito?), impacto cognitivo se uso crônico.
  5. Interações medicamentosas: muitos pacientes com EM usam múltiplas terapias — imunomoduladores, antiespásticos, analgésicos. Precisamos conhecer como canabinoides interagem, por exemplo, afetando metabolismo, efeitos aditivos de sedação.
  6. Impacto sobre progressão da doença: há quase nenhum dado mostrando que canabinoides interferem com lesões desmielinizantes, com progressão de incapacidade ou com neuroproteção real em humanos — a maior parte dos dados é sintomática.

9. Implicações práticas para clínicos

Com base no que se conhece:

  • Considerar nabiximols como opção adjuvante para pacientes com EM que apresentem espasticidade moderada a grave que não respondem bem aos tratamentos padrão.
  • Monitorar com escalas subjetivas (como NRS de espasticidade), mas também buscar medidas objetivas em clínica (força, mobilidade) para avaliar impacto real.
  • Iniciar em doses moderadas e titrar com cautela — observando efeitos adversos, sedação, risco de queda.
  • Avaliar interações medicamentosas, especialmente em pacientes com múltiplos fármacos.
  • Avaliação individualizada: benefício vs risco, expectativa clara com paciente/cuidadores.

10. Conclusão

Os canabinoides, especialmente formulações que combinam THC e CBD, têm evidência clínica significativa de benefício sintomático em esclerose múltipla para espasticidade e dor neuropática. Nabiximols é o principal produto bem estudado, com meta-análises demonstrando eficácia como adjuvante. Contudo, nem todos os estudos confirmam benefícios nos desfechos objetivos, e há variabilidade entre pacientes. A segurança é aceitável, mas há efeitos adversos importantes que devem ser considerados.

Ainda não existe prova de que cannabis ou canabinoides modificam a evolução da doença ou detêm progressão das lesões. Portanto, seu uso deve ser sintomático, adjuvante, cuidadosamente monitorado, com doses e formulações apropriadas. Pesquisas futuras são necessárias para definir dose ideal, regime, impactos a longo prazo, e potencial de uso em diferentes fenótipos de EM.


11. Referências principais

  • Azadvari M., Pourshams M., Guitynavard F., Emami-Razavi S.Z., Taftian-Banadkouki E., Rastkar M. Cannabinoids for spasticity in patients with multiple sclerosis: A systematic review and meta-analysis. 2024. SAGE Journals
  • Nabiximols is Efficient as Add-On Treatment for Patients with Multiple Sclerosis Spasticity Refractory to Standard Treatment: A Systematic Review and Meta-Analysis. Bentham Science / Epistemonikos. eurekaselect.com+1
  • Clinical trials GWMS0106, GWSP0604, SAVANT — nabiximols vs placebo nos desfechos de espasticidade, força muscular, mobilidade. Neurology+1
  • Estudo “Cannabis-Based Medicine for Neuropathic Pain and Spasticity in Patients with Multiple Sclerosis and Spinal Cord Injury” (THC, CBD vs placebo) – sem diferença significativa neste estudo curto. PubMed
  • Ensaios de extrato planta inteira combinando THC+CBD: Whole-plant cannabis extracts in the treatment of spasticity in multiple sclerosis. BioMed Central
  • Neurofisiologia no estudo com spray THC:CBD (espasticidade, CSP) em EM progressiva secundária. PubMed
  • Artigo de segurança/tolerabilidade de nabiximols acumulado em EM e dor crônica: Safety and tolerability of nabiximols… PubMed