Disfunção do Sistema Endocanabinoide na Endometriose: Entenda a Base Biológica do Uso de Cannabis Medicinal

Introdução

A endometriose é uma doença inflamatória crônica e complexa, caracterizada pela presença de tecido semelhante ao endométrio fora da cavidade uterina. Ela afeta cerca de 10% das mulheres em idade reprodutiva e pode causar dor pélvica intensa, dismenorreia, dispareunia e infertilidade.
Nos últimos anos, a atenção científica tem se voltado para o sistema endocanabinoide (ECS) — uma rede biológica fundamental para o controle da dor, da inflamação e da homeostase tecidual.
Estudos crescentes mostram que há uma disfunção do ECS na endometriose, o que pode contribuir para a fisiopatologia da doença e abrir caminhos terapêuticos com o uso de canabinoides exógenos (como CBD e THC).

Este artigo explora em profundidade as alterações do ECS na endometriose, a base mecanística dessa relação e as implicações clínicas para o uso da cannabis medicinal.


1. O que é o Sistema Endocanabinoide (ECS)?

O ECS é um sistema fisiológico complexo, composto por:

  • Endocanabinoides: moléculas endógenas semelhantes aos fitocanabinoides da cannabis, como anandamida (AEA) e 2-araquidonoilglicerol (2-AG);
  • Receptores canabinoides: principalmente CB₁ (predominante no sistema nervoso central) e CB₂ (em células imunes e tecidos periféricos);
  • Enzimas metabólicas: responsáveis pela síntese e degradação (FAAH e MAGL);
  • Função principal: manter o equilíbrio (homeostase) em diversos sistemas fisiológicos — dor, imunidade, inflamação, reprodução e humor.

Na endometriose, cada um desses componentes pode estar alterado, gerando um desequilíbrio que contribui para a persistência da inflamação e da dor crônica.


2. Evidências de Disfunção Endocanabinoide na Endometriose

2.1. Alterações na Expressão dos Receptores CB₁ e CB₂

Estudos histológicos e moleculares demonstram:

  • Diminuição da expressão de CB₁ e CB₂ em lesões endometrióticas comparadas ao endométrio eutópico.
  • Em contrapartida, receptores CB₁ aumentados em fibras nervosas pélvicas, o que pode estar relacionado à sensibilização dolorosa.
  • Essa desregulação espacial do ECS cria um microambiente favorável à inflamação e à dor persistente.

📚 Referência: Dmitrieva et al., Fertility and Sterility, 2010; Sanchez et al., Journal of Clinical Medicine, 2022.


2.2. Níveis Alterados de Endocanabinoides

Estudos de fluido peritoneal e plasma mostram:

  • Níveis reduzidos de anandamida (AEA) em pacientes com endometriose ativa;
  • Diminuição de 2-AG associada a aumento da inflamação peritoneal;
  • Alterações na atividade da FAAH (fatty acid amide hydrolase), enzima que degrada a AEA — excesso de FAAH → menos anandamida → menos regulação anti-inflamatória.

Essas descobertas reforçam a hipótese da chamada “deficiência endocanabinoide clínica”, proposta por Ethan Russo (2004), sugerindo que doenças crônicas de dor, como a endometriose, podem resultar de um tônus endocanabinoide baixo.

📚 Referência: Sanchez et al., Reproductive Sciences, 2021; Russo, Neuro Endocrinology Letters, 2004.


2.3. Correlação com Sintomas Clínicos

Estudos observacionais relacionam a disfunção do ECS a:

  • Maior intensidade de dor pélvica;
  • Piora da dismenorreia;
  • Alterações na sensibilidade visceral e maior hiperalgesia central.

Em resumo, quanto menor o tônus endocanabinoide, maior a dor e pior o controle inflamatório.

📚 Referência: McAllister et al., Pain Medicine, 2020.


3. Como os Canabinoides Podem Restaurar o Equilíbrio

3.1. THC (Δ⁹-tetraidrocanabinol)

  • Atua como agonista parcial de CB₁ e CB₂;
  • Pode reduzir a liberação de neurotransmissores excitadores e modular vias nociceptivas;
  • Efeitos anti-inflamatórios e antiangiogênicos indiretos;
  • Potencial de alívio rápido da dor, mas com efeitos psicoativos dose-dependentes.

📚 Referência: Sugiura et al., Journal of Pharmacology and Experimental Therapeutics, 2018.


3.2. CBD (Canabidiol)

  • Não psicoativo; modula receptores TRPV1, PPARγ, 5-HT₁A;
  • Inibe a FAAH → aumenta os níveis de anandamida, restaurando o tônus endocanabinoide;
  • Reduz citocinas pró-inflamatórias (IL-1β, TNF-α);
  • Efeitos antiangiogênicos e antiproliferativos observados em cultura de células endometrióticas.

📚 Referência: De Petrocellis et al., British Journal of Pharmacology, 2011.


3.3. Sinergia THC + CBD

Estudos pré-clínicos sugerem que a combinação equilibrada pode oferecer:

  • Maior analgesia (via CB₁/CB₂ e TRPV1);
  • Menos efeitos colaterais psicoativos;
  • Melhor modulação do sono e ansiedade, importantes em dor crônica pélvica.

📚 Referência: Barcella et al., Journal of Pain Research, 2023.


4. Implicações Clínicas e Terapêuticas

  • O reconhecimento da disfunção endocanabinoide fundamenta o uso racional da cannabis medicinal como terapia adjuvante;
  • A reposição canabinoide exógena (CBD isolado ou combinado com THC) pode restaurar o equilíbrio funcional do ECS;
  • Ensaios clínicos (ENDOCAN-1, ENDO-CAN1) estão testando essa hipótese com extratos ricos em CBD para dor pélvica.

📚 ClinicalTrials.gov: NCT06477406; ENDOCAN-1 Trial.


5. Limitações e Perspectivas Futuras

Ainda há lacunas a preencher:

  • Quantificar biomarcadores endocanabinoides como preditores de resposta;
  • Definir doses ideais e via de administração;
  • Investigar segurança reprodutiva e fertilidade;
  • Conduzir ensaios clínicos multicêntricos robustos.

A integração do ECS na prática ginecológica é promissora, mas exige mais dados clínicos de alta qualidade.


6. Conclusão

A disfunção do sistema endocanabinoide é um achado consistente em mulheres com endometriose e pode explicar, ao menos em parte, a persistência da inflamação, da angiogênese e da dor crônica.
A cannabis medicinal, ao modular o ECS, representa uma estratégia terapêutica mecanisticamente plausível e potencialmente eficaz — especialmente quando usada como adjuvante em pacientes refratárias às terapias convencionais.
Contudo, a indicação deve ser individualizada, médica e baseada em evidências, até que estudos clínicos mais robustos confirmem os benefícios observados em nível experimental.


Referências Principais

  • Sanchez AM et al. Journal of Clinical Medicine, 2022.
  • Dmitrieva N et al. Fertility and Sterility, 2010.
  • Russo EB. Neuro Endocrinology Letters, 2004.
  • De Petrocellis L et al. Br J Pharmacol, 2011.
  • McAllister M et al. Pain Medicine, 2020.
  • Barcella C et al. J Pain Res, 2023.
  • ClinicalTrials.gov: NCT06477406 (ENDOCAN-1).