Como os Canabinoides Atuam na Epilepsia: O Papel do Sistema Endocanabinoide no Controle das Crises

Introdução

A epilepsia é um dos distúrbios neurológicos mais prevalentes do mundo, afetando mais de 50 milhões de pessoas segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). Embora os medicamentos antiepilépticos tradicionais sejam eficazes para muitos pacientes, cerca de 30% permanecem refratários, apresentando crises persistentes mesmo sob múltiplos tratamentos.

Nos últimos anos, o canabidiol (CBD) e outros canabinoides ganharam destaque como terapias adjuvantes eficazes em epilepsias graves, como as síndromes de Dravet e Lennox-Gastaut. Mas afinal: como a cannabis pode reduzir a hiperexcitabilidade neuronal que caracteriza a epilepsia? A resposta está no sistema endocanabinoide (ECS) e em suas complexas interações com a rede neuronal.


O Sistema Endocanabinoide: um regulador da excitabilidade cerebral

O ECS é composto por:

  • Receptores CB1 e CB2
  • Endocanabinoides (anandamida e 2-AG)
  • Enzimas que sintetizam e degradam esses ligantes

Receptor CB1

  • Altamente expresso em regiões como hipocampo, córtex cerebral e amígdala, áreas cruciais para a epilepsia.
  • Localizado principalmente em terminais pré-sinápticos, regula a liberação de neurotransmissores.
  • Sua ativação reduz a liberação de glutamato (principal neurotransmissor excitatório), ajudando a controlar descargas excessivas.

Receptor CB2

  • Predominante em células imunes e microglia no SNC.
  • Seu papel na epilepsia está ligado à neuroinflamação, frequentemente exacerbada em cérebros epilépticos.
  • Modulação de CB2 pode reduzir a ativação microglial e a liberação de citocinas pró-inflamatórias.

Canabinoides exógenos e seus mecanismos antiepilépticos

1. Canabidiol (CBD)

O CBD é o canabinoide mais estudado em epilepsia. Diferente do THC, não tem efeito psicoativo relevante, e seus mecanismos são multialvo:

  • Antagonismo de GPR55 → reduz influxo de cálcio intracelular, diminuindo excitabilidade neuronal.
  • Modulação de TRPV1 (receptor de vaniloide) → dessensibilização reduz disparos neuronais excessivos.
  • Bloqueio parcial de canais de sódio e cálcio → estabiliza membranas neuronais hiperexcitáveis.
  • Aumento de adenosina extracelular → efeito anticonvulsivante via receptores A1, com ação inibitória na rede neural.
  • Efeitos anti-inflamatórios e antioxidantes → protege neurônios de dano secundário por inflamação crônica.

👉 Em resumo: o CBD não atua apenas em um alvo, mas em uma rede de mecanismos sinérgicos que modulam a excitabilidade e a inflamação.


2. Tetrahidrocanabinol (THC)

  • Atua principalmente como agonista CB1.
  • Pode reduzir a liberação de glutamato, mas em doses mais altas pode causar efeitos pró-convulsivos, especialmente em cérebros imaturos.
  • Por isso, o uso isolado de THC não é recomendado para epilepsia; combinações balanceadas THC:CBD ainda estão em estudo.

3. Nabiximols, nabilona e dronabinol

  • Nabiximols (THC:CBD em spray oral): em estudos piloto, mostrou potencial em epilepsias refratárias, mas ainda não há RCTs robustos.
  • Nabilona e dronabinol (análogos sintéticos de THC): pouco explorados na epilepsia, mas testados em distúrbios neurológicos; uso limitado por perfil de efeitos adversos.

Neuroinflamação e epilepsia: um alvo crucial

A epileptogênese (processo pelo qual o cérebro se torna epiléptico) está associada à inflamação crônica:

  • Ativação microglial → liberação de IL-1β, TNF-α, IL-6.
  • Alterações na barreira hematoencefálica.
  • Estresse oxidativo, levando à excitabilidade sustentada.

O CBD mostrou em modelos animais a capacidade de reduzir citocinas inflamatórias e proteger neurônios contra dano oxidativo, sugerindo que seu benefício vai além do simples controle sintomático das crises.


Evidências pré-clínicas

  • Modelos animais de epilepsia (picrotoxina, pentilenotetrazol, kindling do hipocampo) demonstraram que CBD reduz a frequência e a gravidade das crises.
  • Estudos de knockout de CB1 mostram aumento de suscetibilidade a crises, reforçando o papel central do ECS na proteção contra descargas anormais.

O que ainda não sabemos

Apesar do grande avanço, ainda restam lacunas científicas:

  • Qual é o peso relativo de cada mecanismo (TRPV1, GPR55, adenosina, etc.) na ação anticonvulsivante?
  • Como as variações genéticas no ECS influenciam a resposta individual ao CBD?
  • Quais são os efeitos em longo prazo da modulação do ECS em crianças em desenvolvimento?
  • Qual o papel potencial de novos fitocanabinoides (CBG, CBC, THCV) na epilepsia?

Conclusão

O tratamento da epilepsia com cannabis medicinal, em especial com CBD, vai muito além de uma simples “moda terapêutica”. Ele se apoia em bases neurobiológicas sólidas, com ação em múltiplos alvos do sistema nervoso central e impacto tanto na excitabilidade neuronal quanto na neuroinflamação.

Essa abordagem multimodal ajuda a explicar por que o CBD tem eficácia em síndromes graves e refratárias. Contudo, a ciência ainda precisa esclarecer detalhes dos mecanismos, entender variações individuais de resposta e explorar outros fitocanabinoides que podem expandir o arsenal terapêutico.