CBD no Tratamento de Dravet e Lennox-Gastaut: Evidências Clínicas e Regulamentares

Introdução

As síndromes de Dravet e Lennox-Gastaut (LGS) são formas graves de epilepsia de início precoce, com etiologias diversas, mas com características comuns:

  • Alta refratariedade a tratamentos antiepilépticos (frequente uso de múltiplos fármacos, com resposta parcial ou ausência de resposta).
  • Múltiplos tipos de crise (crises convulsivas, atônicas, mioclônicas, etc.).
  • Impacto no desenvolvimento cognitivo, motor, qualidade de vida, risco aumentado de lesões físicas pelas crises, hospitalizações e mortalidade.

Há alguns anos, o canabidiol (CBD) purificado surgiu como uma alternativa terapêutica adjuvante com evidências robustas para reduzir a frequência das crises nestas síndromes. Esse post explora os principais ensaios, os efeitos clínicos, os riscos, e orientações práticas baseadas nos rótulos e aprovações regulatórias.


Mecanismo de ação — breve recapitulação

Embora o foco desse post seja clínico, vale lembrar que o CBD atua por múltiplas vias que contribuem para efeito antiepiléptico:

  • Modulação de excitação neuronal (ex.: regulação de canais de cálcio, TRPV1, diminuição de atividade via GPR55).
  • Efeitos antiinflamatórios, antioxidantes, sobre sinalização de adenosina.
  • Possível interação com outros medicamentos por meio de enzimas do citocromo P450.

Estas propriedades permitem que o CBD seja eficaz mesmo em síndromes com mutações genéticas como SCN1A (Dravet) ou em redes neuronais muito excitáveis e difusas, como em LGS.


Ensaios clínicos principais

1. Dravet Syndrome

  • Estudo chave:Devinsky et al. (2017), NEJM — “Trial of Cannabidiol for Drug-Resistant Seizures in the Dravet Syndrome” SAGE Journals
    • Duplo-cego, placebo-controlado, com 120 crianças/jovens (2-18 anos) com Dravet e crises convulsivas refratárias. Tratamento adjuvante com CBD purificado, 20 mg/kg/dia. SAGE Journals
    • Período de linha de base de 4 semanas; seguimento de 14 semanas (incluindo titulação + manutenção) SAGE Journals
    • Resultados principais:
      • Frequência convulsiva convulsiva (“convulsive seizures”): caiu de mediana ~12,4 para ~5,9 crises/mês com CBD vs ~14,9 → ~14,1 com placebo. Diferença ajustada mediana: -22,8 pontos percentuais (IC 95% -41,1 a -5,4; p=0,01). SAGE Journals
      • Proporção de pacientes com ≥ 50% de redução em crises convulsivas: ~43% no grupo CBD vs ~27% no placebo (diferença não estatisticamente significante para esse endpoint secundário, p≈0,08). SAGE Journals
      • Melhorias também no estado global reportado pelos cuidadores (escala Caregiver Global Impression) em 62% vs 34% no placebo. SAGE Journals
      • Efeitos adversos mais comuns: diarreia, vômitos, fadiga/somnolência, febre, elevação de enzimas hepáticas, mal-estar geral. SAGE Journals+1
  • Estudo de segurança / dose-escalonamento: Part A do GWPCARE1 (Devinsky et al., 2018) avaliou doses de 5, 10 e 20 mg/kg/dia em crianças de 4-10 anos; demonstrou que exposição (via medicamento e metabólitos) é proporcional à dose, mostrou tolerância razoável, mas com eventos adversos dependentes da dose. Interações foram observadas com clobazam (e seu metabólito N-desmetilclobazam) e com valproato no que toca às enzimas hepáticas. grecc.org+1

2. Lennox-Gastaut Syndrome

  • Ensaios principais para LGS (dois estudos de Fase 3, 12 semanas de manutenção + períodos de titulação, acompanhamento de baseline) adicionando CBD como tratamento adjuvante a regimes existentes de medicamentos antiepilépticos. U.S. Food and Drug Administration+1
  • Resultados:
    • Em participantes tratados com 20 mg/kg/dia de CBD, redução mediana de “drop seizures” (queda atônica/tonica ou tônico-clônica que provoca queda) de ~44% comparado com ~22% no grupo placebo em um dos estudos. U.S. Food and Drug Administration+1
    • Em outro estudo com doses de 10 mg/kg/dia e 20 mg/kg/dia, ambas mostraram benefício significativo vs placebo. U.S. Food and Drug Administration+1
  • Efeitos adversos: semelhantes aos observados em Dravet: sonolência, diminuição apetite, diarreia, risco de aumento das enzimas hepáticas. U.S. Food and Drug Administration+1

Aprovações regulatórias e indicações oficiais

  • FDA (EUA): aprovação de Epidiolex® para tratamento das crises associadas a Dravet syndrome, Lennox-Gastaut syndrome e tuberous sclerosis complex (TSC) em pacientes com 1 ano de idade ou mais. Dados de Acesso da FDA+2PR Newswire+2
  • EMA (União Europeia): aprovado sob o nome Epidyolex® para as mesmas indicações, embora haja critérios específicos (ex: uso associado a clobazam em algumas jurisdições) e idades mínimas (por exemplo, ≥ 2 anos para LGS/Dravet em alguns casos) PR Newswire+1
  • O rótulo regulamentar exige avaliação de enzimas hepáticas antes de iniciar tratamento e monitorização contínua. Dados de Acesso da FDA+1

Doses, titulação e regimes clínicos recomendados

FaseIdadeDose inicial recomendadaDoses mantidas comunsDose máxima usada nos RCTs / aprovadas*
Dravet / LGS≥ 1-2 anos (conforme jurisdição)2,5 mg/kg duas vezes ao dia (≈ 5 mg/kg/dia)5 mg/kg duas vezes ao dia (≈ 10 mg/kg/dia)10 mg/kg duas vezes ao dia (≈ 20 mg/kg/dia) Dados de Acesso da FDA+2U.S. Food and Drug Administration+2

* A dose máxima é aquela frequentemente usada em estudo ou constante em rótulo; tolerância individual varia, e doses maiores trazem maior risco de efeitos adversos.

A titulação geralmente inicia com dose baixa, manutenção depois de 1 semana, e aumentos semanais de 2,5 mg/kg/dose (isto é, 5 mg/kg/dia incrementos) até tolerância/benefício máximo. Dados de Acesso da FDA+2grecc.org+2


Efeitos clínicos práticos — o que os dados mostram na vida real

  • Redução de crises convulsivas: aproximadamente 30-40% de redução mediana de frequência de crises convulsivas ou “drop seizures” em ensaios controlados para muitos pacientes, com alguns alcançando ≥ 50% de redução. SAGE Journals+2U.S. Food and Drug Administration+2
  • Melhoria global: além da redução do número de crises, os cuidadores reportam melhorias na qualidade de vida, estado geral, função cognitiva/estado comportamental em alguns casos. Por exemplo, no Dravet, 62% relatam melhora clínica global vs 34% no placebo. SAGE Journals
  • Variabilidade de resposta: nem todos respondem; há subgrupos com benefício maior. Fatores como interações medicamentosas (ex: uso concomitante de clobazam), tolerância, tipo de crise, genética e carga de tratamento prévio influenciam.

Riscos, efeitos adversos e monitorização

  • Eventos adversos comuns: sonolência/sedação, diarreia, diminuição do apetite, vômitos, infecção, febre, mal-estar, elevação de enzimas hepáticas. SAGE Journals+1
  • Hepatotoxicidade: elevações de ALT/AST foram observadas, especialmente em combinação com valproato. Raramente levou a lesão hepática clínica, mas monitorização é mandatória. grecc.org+1
  • Interações medicamentosas importantes:
    • Clobazam: CBD aumenta níveis de clobazam ou seu metabólito ativo (N-desmetilclobazam) via inibição de CYP2C19 / CYP3A4, aumentando risco de sedação. grecc.org+1
    • Outros antiepilépticos: embora estudos de dose-escalonamento mostraram que muitos ASMs não são significativamente alterados, precaução é necessária, especialmente em regimes polifarmacológicos. PubMed
  • Populações especiais: crianças muito jovens (menos de 1 ano), gestantes, pacientes com disfunção hepática significativa. Nestes casos, dados são limitados.

Comparativo das evidências e limitações

AspectoPontos fortesLimitações / lacunas
RCTs de fase III bem desenhadosEvidência estatisticamente sólida em DT (Dravet), LGS; aprovações regulatóriasCurto-prazo (12-14 semanas de manutenção nos estudos principais); poucos dados de seguimento de médio e longo prazo (>1-2 anos)
Tamanho das amostras razoável para síndromes rarasAmostras multicêntricas; uso em várias idadesSubgrupos pequenos (ex: menos pacientes adultos ou muito jovens)
Dados de segurança bastante robustos para o período dos ensaiosefeitos conhecidos documentados; dose-resposta; interações caracterizadas em parteDesconhecimento de efeitos sobre desenvolvimento neurológico de longo prazo, impacto cognitivo em longo prazo; efeitos raros provavelmente não detectados ainda
Regulação clara (FDA, EMA, etc.)Formulário purificado, rótulo definido, critérios de uso, monitorização obrigatóriaAcesso limitado em alguns países; custo elevado; exigência de regime concomitante de ASMs; barreiras regulatórias locais; variabilidade de cobertura por sistemas públicos/seguros de saúde

Prática clínica recomendações baseadas nas evidências

Para médicos que tratam pacientes com Dravet ou Lennox-Gastaut:

  1. Avaliação antes de iniciar
    • Confirmar diagnóstico da síndrome e tipos de crise.
    • Verificar regime atual de medicamentos antiepilépticos, histórico de falha terapêutica.
    • Obter exames basais: ALT, AST, bilirrubina total; função hepática; função renal.
  2. Escolha do paciente
    • Crianças / adolescentes com resposta parcial ou resistência a múltiplos ASMs.
    • Pacientes tolerantes a efeitos sedativos, sem risco elevado de hepatotoxicidade.
    • Preferir em locais com suporte para monitorização (laboratorial, clínico) e ajuste de medicamentos concomitantes.
  3. Início e titulação
    • Dose inicial de 5 mg/kg/dia (2,5 mg/kg duas vezes ao dia).
    • Manutenção de 10 mg/kg/dia (5 mg/kg duas vezes ao dia).
    • Aumento gradual até 20 mg/kg/dia conforme tolerância e necessidade, com incrementos semanais de cerca de 5 mg/kg/dia. Dados de Acesso da FDA+1
  4. Monitorização durante tratamento
    • Enzimas hepáticas no início, após 2-4 semanas, depois periodicamente.
    • Avaliação clínica de sedação, alimentação, peso, estado gastrointestinal.
    • Revisar interações: se o paciente usa clobazam, avaliar possíveis ajustes; atenção ao uso de valproato.
  5. Objetivos terapêuticos realistas
    • Redução de crises ≥ 50% é excelente, mas nem todos alcançarão isso.
    • Melhorias na qualidade de vida, segurança (menos lesões por quedas), menos hospitalizações, melhora no sono / comportamento são também desfechos importantes.
    • Tempo esperado de resposta: algumas semanas após atingir dose terapêutica.
  6. Acompanhamento a longo prazo
    • Manter controle clínico, seguir com extensões abertas quando disponíveis.
    • Avaliar efeitos cognitivos, desenvolvimento se criança.
    • Relatar e monitorar eventos adversos raros.

Conclusão

O CBD purificado (Epidiolex/Epidyolex) é hoje uma das intervenções com melhor evidência clínica para epilepsias refratárias severas, em especial síndromes de Dravet e Lennox-Gastaut. Ensaios controlados demonstraram reduções substanciais de frequência de crises, melhora global de estado clínico, com perfil de segurança aceitável quando bem monitorado.

Contudo, apesar dos avanços, ainda persistem lacunas importantes: efeitos em longo prazo, impacto no desenvolvimento cognitivo, acesso em diferentes sistemas de saúde, custo, e respostas variadas entre pacientes. Para clínicos, o CBD oferece uma opção valiosa, especialmente em pacientes refratários, mas seu uso exige estrutura (monitorização, ajuste de doses, avaliação de interações) e expectativa realista.


Referências principais

  • Devinsky O., Cross J. H., Laux L., Marsh E., Miller I., Nabbout R., Scheffer I. E., Thiele E. A., Wright S., et al. “Trial of Cannabidiol for Drug-Resistant Seizures in the Dravet Syndrome.” N Engl J Med. 2017;376(21):2011–2020. SAGE Journals
  • Devinsky O., et al. “Phase 3 pivotal trial for Epidiolex in Lennox Gastaut Syndrome.” (dados de redução de drop seizures) U.S. Food and Drug Administration+1
  • Estudo de dose-escalonamento e segurança em Dravet (GWPCARE1 Part A) – Devinsky, Thiele, etc. grecc.org+1
  • Rótulo farmacêutico do EPIDIOLEX – FDA Prescribing Information (2024) Dados de Acesso da FDA
  • Revisões sobre uso pediátrico e evidências de epilepsias refratárias na prática clínica real. PMC