Introdução
Os Transtornos de Ansiedade (TA) constituem uma das condições psiquiátricas mais prevalentes no mundo, afetando aproximadamente 301 milhões de pessoas globalmente (OMS, 2023). Caracterizam-se por preocupações excessivas, medo desproporcional e sintomas somáticos como taquicardia, sudorese, tensão muscular e distúrbios do sono.
Apesar da ampla disponibilidade de antidepressivos (ISRS, IRSN) e ansiolíticos benzodiazepínicos, uma parcela significativa dos pacientes apresenta resposta parcial, efeitos adversos indesejáveis ou risco de dependência, o que impulsiona a busca por novas estratégias terapêuticas.
Entre as abordagens emergentes, destaca-se o uso da Cannabis medicinal, particularmente o Canabidiol (CBD), reconhecido por seu perfil ansiolítico, não psicoativo e bem tolerado, e o Tetrahidrocanabinol (THC), em doses controladas, com efeitos moduladores de humor e analgesia emocional.
Este artigo revisa, com base em evidências científicas recentes, o papel da Cannabis medicinal no manejo dos transtornos de ansiedade, abordando mecanismos neurobiológicos, ensaios clínicos, protocolos terapêuticos e segurança.
1. O Sistema Endocanabinoide e a Ansiedade
O Sistema Endocanabinoide (SEC) é um modulador central da resposta ao estresse e da homeostase emocional, atuando em áreas cerebrais-chave envolvidas na ansiedade, como amígdala, hipocampo, córtex pré-frontal e hipotálamo.
Principais componentes:
- Receptores CB1: amplamente distribuídos no SNC; regulam liberação de neurotransmissores como GABA e glutamato.
- Receptores CB2: mais associados a processos inflamatórios e imunomodulatórios.
- Endocanabinoides: Anandamida (AEA) e 2-AG.
- Enzimas: FAAH (degrada AEA) e MAGL (degrada 2-AG).
Estudos demonstram que déficits endocanabinoides (como baixa concentração de AEA ou hipofunção do CB1) estão relacionados a hiperatividade da amígdala, hipervigilância e respostas exacerbadas ao estresse (Hill et al., Biol Psychiatry, 2009).
O CBD, ao inibir a FAAH e aumentar os níveis de anandamida, restaura a sinalização endocanabinoide e reduz a hiperatividade neuronal associada à ansiedade.
2. Mecanismos Neurobiológicos do CBD e THC na Ansiedade
O Canabidiol (CBD) é o principal agente ansiolítico da planta, enquanto o THC, em baixas doses, pode apresentar efeito calmante e euforizante leve, mas em altas doses pode induzir ansiedade ou paranoia — reforçando a importância da titulação individualizada.
Mecanismos ansiolíticos do CBD:
a) Ativação dos receptores 5-HT1A (Serotonina)
- O CBD é um agonista parcial desses receptores, modulando circuitos límbicos (amígdala, córtex cingulado anterior) e reduzindo ansiedade antecipatória e social.
- Esse efeito é comparável ao de ansiolíticos serotonérgicos, como buspirona.
(Campos et al., Front Pharmacol, 2012)
b) Inibição da enzima FAAH
- Aumenta níveis de anandamida, promovendo efeito calmante via receptores CB1 no sistema límbico.
c) Modulação GABAérgica
- Potencializa inibição neuronal, reduzindo hiperexcitabilidade e hiperatividade da amígdala.
d) Regulação do eixo hipotálamo-hipófise-adrenal (HHA)
- Reduz liberação de cortisol e resposta ao estresse crônico.
e) Neurogênese hipocampal
- Estimula neurogênese no hipocampo, efeito também observado com antidepressivos (Campos et al., Mol Neurobiol, 2013).
3. Evidências Clínicas: Estudos em Humanos
3.1 Ansiedade Social (Fobia Social)
- Bergamaschi et al., 2011 – Neuropsychopharmacology
Estudo randomizado, duplo-cego, com 24 pacientes com transtorno de ansiedade social (TAS).
➤ CBD 600 mg oral, administrado antes de teste de fala pública, reduziu significativamente a ansiedade, desconforto cognitivo e alarme fisiológico, comparado ao placebo.
3.2 Transtorno de Ansiedade Generalizada (TAG)
- Blessing et al., 2015 – Neurotherapeutics
Revisão sistemática: o CBD reduz ansiedade em modelos pré-clínicos e humanos, com efeitos comparáveis aos ISRS, mas sem sedação, dependência ou disfunção cognitiva.
3.3 Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT)
- Elms et al., 2019 – J Altern Complement Med
Estudo retrospectivo com 11 pacientes tratados com CBD 25–100 mg/dia.
➤ 91% relataram redução de pesadelos e revivescências, com melhora do sono e humor. - Passos et al., 2022 – Front Psychiatry
Demonstra que CBD modula a consolidação da memória emocional, reduzindo a re-experiência traumática no TEPT.
3.4 Ansiedade Induzida por THC
- Zuardi et al., 1982 – Psychopharmacology
O CBD antagoniza a ansiedade induzida pelo THC, comprovando seu papel modulador.
4. Evidências em Modelos Pré-Clínicos
Estudos em roedores mostraram que o CBD:
- Reduz comportamentos ansiosos em testes de labirinto em cruz elevado;
- Atua via 5-HT1A, bloqueando resposta ansiosa quando antagonistas específicos são aplicados (Campos et al., 2013);
- Induz neurogênese hipocampal e reduz neuroinflamação relacionada ao estresse crônico (Sales et al., Prog Neuropsychopharmacol Biol Psychiatry, 2020).
Esses achados reforçam a ação multimodal do CBD, diferente dos ansiolíticos clássicos.
5. Protocolos Clínicos e Dose-Resposta
O efeito ansiolítico do CBD é dose-dependente e apresenta curva em forma de U invertida, ou seja, doses muito baixas ou muito altas podem ser menos eficazes.
| Indicação | Dose inicial (mg/dia) | Dose média terapêutica | Observações |
|---|---|---|---|
| TAG / TAS | 25–50 mg | 100–300 mg | Dose única ou fracionada; início gradual |
| TEPT | 25–100 mg | 100–200 mg | Preferencial à noite, reduz pesadelos |
| Ansiedade situacional | 300–600 mg | — | Dose única pré-evento (ex.: falar em público) |
- Via sublingual: absorção rápida, biodisponibilidade estável.
- Via oral (cápsulas): liberação lenta, útil para ansiedade persistente.
- Combinação CBD + THC (20:1): útil em ansiedade associada à dor crônica ou insônia.
6. Perfil de Segurança e Tolerabilidade
O CBD é considerado seguro e bem tolerado pela OMS (2018), com baixo risco de abuso, dependência ou sedação.
Efeitos adversos leves:
- Sonolência discreta
- Fadiga
- Boca seca
- Diarreia leve (doses altas)
O THC, em doses elevadas, pode precipitar ansiedade e taquicardia, motivo pelo qual formulações ricas em CBD e com baixo THC (<0,3%) são preferidas em quadros ansiosos.
Interações medicamentosas
CBD pode inibir CYP3A4 e CYP2C19, alterando níveis de benzodiazepínicos, antidepressivos tricíclicos e anticonvulsivantes — monitoramento médico é indicado.
7. Perspectivas Futuras e Medicina Personalizada
A pesquisa translacional tem avançado para identificar biomarcadores de resposta ao CBD, como:
- Polimorfismos em FAAH, CB1, 5-HT1A;
- Níveis basais de cortisol e atividade da amígdala (fMRI);
- Perfis endocanabinoides plasmáticos.
A tendência é caminhar para uma psiquiatria de precisão, onde a cannabis medicinal será ajustada conforme o perfil neurobiológico individual, integrando-se a terapias como TCC e mindfulness.
8. Conclusão
O conjunto crescente de evidências científicas pré-clínicas e clínicas demonstra que o Canabidiol (CBD) exerce efeitos ansiolíticos robustos, seguros e bem tolerados, atuando por múltiplos mecanismos neurobiológicos e modulando o sistema endocanabinoide, serotoninérgico, GABAérgico e HHA.
Em pacientes com Transtorno de Ansiedade Generalizada, Fobia Social ou TEPT, o CBD isolado ou em combinação com THC em baixa concentração representa uma alternativa terapêutica promissora, especialmente quando há resistência a psicofármacos convencionais ou efeitos adversos intoleráveis.
O futuro da psiquiatria canabinoide reside em protocolos personalizados, monitoramento clínico rigoroso e integração com abordagens psicoterápicas baseadas em evidências.
Referências Bibliográficas
- Bergamaschi MM et al. Neuropsychopharmacology. 2011;36(6):1219–1226.
- Blessing EM et al. Neurotherapeutics. 2015;12(4):825–836.
- Campos AC et al. Front Pharmacol. 2012;3:155.
- Elms L et al. J Altern Complement Med. 2019;25(4):392–397.
- Hill MN et al. Biol Psychiatry. 2009;65(7):627–633.
- Passos IC et al. Front Psychiatry. 2022;13:845530.
- Zuardi AW et al. Psychopharmacology. 1982;76(3):245–250.
- Sales AJ et al. Prog Neuropsychopharmacol Biol Psychiatry. 2020;99:109873.
- Organização Mundial da Saúde (OMS). Critical Review Report: Cannabidiol (CBD), 2018.

