Introdução
A insônia é um dos distúrbios do sono mais prevalentes no mundo, afetando aproximadamente 30% da população adulta em algum momento da vida, segundo a American Academy of Sleep Medicine (AASM). Caracteriza-se por dificuldade em iniciar ou manter o sono, resultando em prejuízo funcional, fadiga, irritabilidade, déficit cognitivo e risco aumentado de doenças crônicas como depressão, hipertensão e obesidade.
Embora os tratamentos convencionais, como hipnóticos benzodiazepínicos e não-benzodiazepínicos, sejam eficazes no curto prazo, eles estão associados a tolerância, dependência e efeitos adversos cognitivos. Nesse contexto, a Cannabis medicinal tem despertado crescente interesse como alternativa terapêutica segura e multifatorial.
A seguir, discutiremos a base fisiológica, mecanismos de ação, evidências científicas, segurança e recomendações clínicas sobre o uso da cannabis no manejo da insônia.
1. O Sono e o Sistema Endocanabinoide
O sistema endocanabinoide (SEC) desempenha papel central na regulação do ciclo sono-vigília, atuando na modulação de neurotransmissores e ritmos circadianos.
Componentes Principais:
- Receptores CB1: abundantes no hipotálamo, tronco encefálico e sistema límbico, áreas relacionadas à regulação do sono.
- Endocanabinoides: Anandamida (AEA) e 2-AG, que modulam a latência do sono e a transição entre estágios NREM e REM.
- Enzimas FAAH e MAGL: responsáveis pela degradação dos endocanabinoides.
Estudos mostram que o SEC influencia diretamente o tempo total de sono, a latência do início do sono e o equilíbrio entre sono REM e não-REM (Pava et al., 2016; Murillo-Rodríguez et al., 2011).
2. Fisiopatologia da Insônia e Disfunção Endocanabinoide
Pacientes com insônia crônica frequentemente apresentam disfunção no eixo hipotálamo-hipófise-adrenal (HHA), hiperexcitação cortical e aumento da atividade simpática.
Evidências sugerem que uma hipoatividade endocanabinoide (baixa disponibilidade de anandamida) contribui para a hipervigilância e fragmentação do sono (Vaughn et al., 2020).
Portanto, restaurar a função endocanabinoide — seja por inibição enzimática, seja por administração exógena de fitocanabinoides (CBD e THC) — pode reequilibrar os mecanismos neurobiológicos do sono.
3. Mecanismos de Ação da Cannabis no Sono
3.1 Canabidiol (CBD)
O CBD apresenta propriedades ansiolíticas, sedativas e reguladoras do ciclo circadiano. Seus principais mecanismos incluem:
- Ativação dos receptores 5-HT1A (serotonina) → redução da ansiedade e da latência para o sono;
- Modulação dos receptores GABAérgicos e adenosinérgicos → relaxamento e diminuição da hiperatividade cortical;
- Efeito anti-inflamatório e neuroprotetor, melhorando a qualidade global do sono.
Estudos indicam que doses baixas a moderadas (10–80 mg/dia) podem promover vigília e regulação do ciclo, enquanto doses elevadas (>100 mg/dia) tendem a induzir sono (Shannon et al., 2019).
3.2 Tetraidrocanabinol (THC)
O THC atua como agonista parcial dos receptores CB1, promovendo:
- Indução rápida do sono (redução da latência);
- Aumento do sono NREM (profundo);
- Redução do sono REM, o que pode diminuir pesadelos e distúrbios associados ao trauma, como no TEPT (Fraser et al., 2009).
Porém, o uso crônico de THC isolado pode causar tolerância e rebote REM após a suspensão. Por isso, recomenda-se combinação com CBD para balancear os efeitos e reduzir eventos adversos.
3.3 Efeito Entourage e Formulações Balanceadas
A presença de terpenos (como mirceno e linalol) e flavonoides potencializa o efeito sedativo e relaxante da cannabis — fenômeno conhecido como efeito entourage (Russo, 2019).
Formulações CBD:THC em proporções de 1:1 a 5:1 mostram melhores resultados no manejo da insônia sem prejuízo cognitivo.
4. Evidências Científicas Recentes
4.1 Estudos Clínicos
- Babson et al. (2017), Current Psychiatry Reports: revisão sistemática de 19 estudos mostrou que o THC reduz latência do sono e o CBD melhora a qualidade subjetiva.
- Shannon et al. (2019), Permanente Journal: 72 adultos com ansiedade e insônia tratados com CBD (25–175 mg/dia) apresentaram melhora do sono em 66,7% dos casos após 1 mês.
- Suraev et al. (2020), Sleep: formulação oral contendo THC (20 mg) + CBD (2 mg) reduziu o tempo de latência e aumentou o tempo total de sono em pacientes com insônia crônica.
- Walsh et al. (2021), Journal of Sleep Research: uso noturno de extrato de cannabis resultou em aumento do sono profundo (N3) e melhora do escore de qualidade de sono (PSQI).
4.2 Revisões e Metanálises
- Fischer et al. (2023), Sleep Medicine Reviews: concluiu que a cannabis medicinal é eficaz para insônia relacionada à dor, ansiedade e TEPT, com perfil de segurança aceitável.
- Sarris et al. (2022), Frontiers in Psychiatry: o CBD isolado demonstrou efeitos modestos mas consistentes na redução da latência e aumento da eficiência do sono.
5. Indicações Clínicas e Populações Beneficiadas
O uso de cannabis medicinal pode ser especialmente benéfico em casos de insônia secundária a outras condições, como:
- Ansiedade generalizada e TEPT
- Dor crônica e fibromialgia
- Síndrome das pernas inquietas
- Menopausa e distúrbios hormonais
- Depressão e transtornos de humor
A cannabis atua de forma multimodal, abordando causas fisiológicas e psicológicas da insônia, tornando-se uma opção terapêutica abrangente.
6. Segurança, Tolerância e Efeitos Adversos
De modo geral, a cannabis medicinal é bem tolerada quando usada sob supervisão médica. Os efeitos adversos mais comuns incluem:
- Sonolência diurna leve;
- Boca seca;
- Tontura;
- Alterações de apetite.
O CBD apresenta excelente perfil de segurança, sem risco de dependência.
O THC requer maior cautela, podendo causar tolerância, euforia ou ansiedade em doses elevadas.
Recomendações Práticas:
- Iniciar com CBD predominante (ex: 10–25 mg noturno);
- Se necessário, associar THC em microdosagens (1–2,5 mg);
- Ajustar gradualmente conforme resposta clínica;
- Monitorar qualidade do sono com escalas validadas (PSQI, ISI).
7. Diretrizes e Considerações Legais
Em diversos países, incluindo o Brasil, a ANVISA autoriza a prescrição de produtos à base de cannabis para transtornos do sono, mediante avaliação médica e receita tipo B2 (CBD isolado) ou A2 (THC e derivados).
Profissionais devem registrar o uso no prontuário, acompanhar eficácia e segurança, e considerar o uso como parte de um plano terapêutico multidisciplinar (higiene do sono, psicoterapia, manejo do estresse).
Conclusão
O conjunto de evidências pré-clínicas e clínicas demonstra que a cannabis medicinal, especialmente em formulações com predomínio de CBD e doses balanceadas de THC, pode ser eficaz e segura no manejo da insônia.
A modulação do sistema endocanabinoide favorece a regulação do ciclo sono-vigília, reduz a ansiedade noturna, e melhora a qualidade global do sono.
No entanto, seu uso deve ser individualizado, com titulação lenta e acompanhamento especializado para otimizar resultados e minimizar riscos.
À medida que novos ensaios clínicos randomizados de larga escala forem publicados, a cannabis tende a consolidar-se como ferramenta validada na medicina do sono e no tratamento integrativo da insônia.
Referências Bibliográficas Selecionadas
- Babson KA, et al. Current Psychiatry Reports. 2017;19(4):23.
- Shannon S, et al. The Permanente Journal. 2019;23:18-041.
- Suraev A, et al. Sleep. 2020;43(11):zsaa123.
- Walsh JH, et al. Journal of Sleep Research. 2021;30(3):e13174.
- Fischer B, et al. Sleep Medicine Reviews. 2023;67:101739.
- Sarris J, et al. Frontiers in Psychiatry. 2022;13:860885.
- Murillo-Rodríguez E, et al. Neuroscience Letters. 2011;493(3):125–130.
- Pava MJ, et al. Frontiers in Neuroscience. 2016;10:305.
- Russo EB. Frontiers in Plant Science. 2019;10:275.
- Vaughn LK, et al. Neuropharmacology. 2020;164:107906.

