Introdução
A Esclerose Múltipla (EM) é uma doença autoimune e neurodegenerativa caracterizada por inflamação, desmielinização e perda axonal no sistema nervoso central. Entre seus sintomas mais incapacitantes, a espasticidade — rigidez muscular e espasmos involuntários — afeta até 80% dos pacientes em algum estágio da doença.
Embora existam medicamentos tradicionais (como baclofeno, tizanidina e benzodiazepínicos), muitos pacientes permanecem refratários ou apresentam efeitos adversos limitantes. Nesse contexto, a cannabis medicinal tem emergido como uma alternativa promissora, especialmente na forma de nabiximols (Sativex®), um spray oromucosal contendo proporção 1:1 de THC (Δ9-tetraidrocanabinol) e CBD (canabidiol).
Como os canabinoides atuam na espasticidade?
A espasticidade na EM decorre da desmielinização e consequente perda de controle inibitório sobre reflexos medulares. O sistema endocanabinoide (ECS) tem papel crucial na modulação da excitabilidade neuronal e da transmissão sináptica.
- Receptor CB1: presente em neurônios, regula a liberação de neurotransmissores excitatórios (glutamato) e inibitórios (GABA). Sua ativação ajuda a reduzir a hiperexcitabilidade.
- Receptor CB2: expresso em células imunes e microglia, contribui para reduzir neuroinflamação, que agrava a espasticidade.
- THC: agonista parcial de CB1 e CB2 → atua diretamente na redução da hiperatividade neuronal e muscular.
- CBD: modula TRPV1, GPR55 e canais iônicos, além de atenuar a ação psicoativa do THC.
👉 Esse conjunto de ações explica a melhora relatada em rigidez, espasmos e qualidade do sono em pacientes com EM tratados com cannabis medicinal.
Evidências Clínicas
1. Ensaio CAMS (Cannabis in Multiple Sclerosis, 2003)
- Design: Ensaio randomizado, duplo-cego, placebo-controlado com 630 pacientes.
- Intervenção: cápsulas de THC, extrato de cannabis ou placebo.
- Resultados: melhora subjetiva significativa na espasticidade relatada pelos pacientes, mas sem diferença estatisticamente robusta em medidas objetivas de força muscular.
- Conclusão: evidência de benefício sintomático percebido, mas necessidade de escalas mais sensíveis.
2. Ensaio MUSEC (Multiple Sclerosis and Extract of Cannabis, 2011)
- Design: Randomizado, duplo-cego, com 279 pacientes refratários a terapias convencionais.
- Intervenção: extrato de cannabis vs. placebo.
- Resultados: após 12 semanas, 29,4% dos pacientes tratados relataram melhora ≥30% na espasticidade contra 15,7% no grupo placebo.
- Conclusão: benefício clinicamente relevante em pacientes selecionados.
3. Nabiximols (Sativex®): ensaios pivotais e meta-análises
- O Sativex® é aprovado em diversos países (incluindo a União Europeia, Canadá e Brasil) especificamente para espasticidade moderada a grave em EM refratária.
- Ensaio duplo-cego (Collin et al., Eur J Neurol 2010): mostrou redução significativa na espasticidade pelo Numeric Rating Scale (NRS) e melhora no sono e dor.
- Meta-análise da Cochrane (2018): evidência moderada de eficácia do nabiximols em espasticidade, especialmente em medidas relatadas pelo paciente.
- Estudo observational (2019, Itália, n=1.600 pacientes): melhora sustentada da espasticidade em longo prazo, com perfil de segurança aceitável.
Segurança e Efeitos Adversos
Os efeitos adversos mais comuns relatados incluem:
- Tontura, fadiga e boca seca.
- Alterações cognitivas leves ou transitórias (associadas ao THC).
- Risco de quedas, especialmente em idosos e pacientes com déficit motor grave.
Contudo, taxas de descontinuação são relativamente baixas, e em comparação com benzodiazepínicos e relaxantes musculares clássicos, o perfil de tolerabilidade é considerado favorável.
Desafios e Limitações
- Subjetividade dos desfechos: muitos estudos se baseiam em autoavaliação da espasticidade, o que pode inflar percepções positivas.
- Resposta heterogênea: nem todos os pacientes respondem, sugerindo necessidade de biomarcadores para identificar respondedores.
- Custo e acesso: nabiximols ainda tem preço elevado e disponibilidade restrita em alguns países.
- Longo prazo: faltam dados robustos sobre uso crônico (>5 anos) em larga escala.
Conclusão
A cannabis medicinal, particularmente na formulação nabiximols (THC+CBD), representa hoje uma das opções mais bem estabelecidas para o tratamento da espasticidade refratária em Esclerose Múltipla.
- Há ensaios clínicos randomizados e meta-análises que confirmam benefício clínico em pacientes selecionados.
- Os efeitos são mais consistentes em medidas subjetivas (relato do paciente) do que em avaliações objetivas, mas ainda assim clinicamente relevantes.
- O perfil de segurança é aceitável, exigindo monitorização cuidadosa de sedação, tontura e risco de quedas.
👉 Na prática clínica, os canabinoides devem ser considerados quando terapias convencionais falham, sempre com acompanhamento médico especializado.
📌 Referências principais
- Zajicek J, et al. Cannabinoids in multiple sclerosis (CAMS) study. Lancet. 2003.
- Zajicek J, et al. MUSEC trial: cannabis extract in MS. J Neurol Neurosurg Psychiatry. 2012.
- Collin C, et al. Randomized controlled trial of nabiximols for spasticity in MS. Eur J Neurol. 2010.
- Koppel BS, et al. Systematic review: efficacy and safety of medical marijuana in neurologic disorders. Neurology. 2014.
- Whiting PF, et al. Cannabinoids for medical use: a systematic review. JAMA. 2015.
- National Multiple Sclerosis Society (NMSS, EUA). Cannabis and MS: updated guidance 2023.

