A Doença de Parkinson (DP) é uma enfermidade neurodegenerativa progressiva caracterizada por perda de neurônios dopaminérgicos na substância negra pars compacta, presença de agregados de α‐sinucleína, estresse oxidativo, disfunção mitocondrial, neuroinflamação, além de manifestações motoras (tremor, rigidez, acinesia) e não-motoras (sono, dor, distúrbios psiquiátricos, cognitivos). Os tratamentos atuais (levodopa, agonistas dopaminérgicos, inibidores da MAO/COMT, etc.) são eficazes para sintomas, mas não modificam substancialmente a progressão da doença.
Nesse cenário, os canabinoides (CBD, THC, agonistas sintéticos, moduladores do sistema endocanabinoide) são investigados por seu potencial neuroprotetor, anti-inflamatório, antioxidante, modulador da agregação proteica, bem como para alívio de sintomas, principalmente não-motoras. Vamos analisar o que a ciência mostra até hoje.
Mecanismos biológicos plausíveis
Antes de examinar os dados, é essencial entender os mecanismos através dos quais os canabinoides poderiam beneficiar a DP:
- Modulação do sistema endocanabinoide
- Receptores CB1, altamente expressos no SNC, modulam a excitação neuronal.
- Receptores CB2, encontrados em células da glia e do sistema imune, têm papel em controlar inflamação.
- Efeitos antioxidantes
- Redução do dano oxidativo (radicais livres) que contribuem para lesão neuronal.
- Redução de neuroinflamação
- Modulação de microglia, citocinas pró-inflamatórias, talvez indução de fenótipo “anti-inflamatório” ou regulatório.
- Proteção contra agregados de α-sinucleína
- Possível diminuição da agregação ou promoção da depuração/ proteassoma/autofagia.
- Neuritogênese / restauração sináptica
- Aumento de expressão de proteínas de crescimento axonal ou sináptico (ex: GAP-43, sinapsina, sinaptofisina); promoção de regeneração ou manutenção sináptica.
- Modulação de outros sistemas neuroquímicos
- Interações com receptores de serotonina, adenosina, canais de cálcio, etc., que podem afetar sono, dor, humor, plasiticidade neuronal.
Evidência pré-clínica
Diversos modelos animais e celulares já demonstraram efeitos promissores dos canabinoides em contextos relacionados à Parkinson:
- Um estudo recente em modelo de rato lesado por 6-hidroxidopamina (6-OHDA) mostrou que tratamento crônico com CBD reduziu a degeneração nigroestriatal, atenuou a resposta neuroinflamatória, e melhorou o desempenho motor. PubMed
- Outro work usou modelo ratinho 6-OHDA bilateral: CBD reduziu perda neuronal dopaminérgica no SNpc, diminuiu inflamação, e protegeu enovelamento de neurônios jovens no hipocampo, melhorando comportamento cognitivo e sintomas de “desespero” (behavioral despair). Cambridge University Press & Assessment
- Em C. elegans transgênicos (e também intoxicados com 6-OHDA ou resperina), o CBD demonstrou diminuir degeneração de neurônios dopaminérgicos, reduzir acúmulo de α-sinucleína, reduzir estresse oxidativo, comportamentos alterados, e estender a longevidade do vermes. PubMed+1
- Em células PC12 tratadas com MPP+, CBD aumentou viabilidade celular, expressão de proteínas sinápticas e axonais (GAP-43, sinaptofisina, sinapsina), promoveu neuritogênese via envolvimento de receptores trkA (um receptor do fator de crescimento nervoso) e protegeu contra efeito deletério da toxina. PubMed
- Meta-análises pré-clínicas de modelos animais apontam que canabinoides, ou terapias relacionadas ao sistema endocanabinoide, melhoram de forma significativa testes comportamen tais (rotarod, pole test, open field) comparado a controles. PubMed
Esses dados pré-clínicos sustentam fortemente que há potencial real de neuroproteção, modulação dos processos tóxicos associados à DP, e melhoria de sintomas comportamentais em modelos animais. Contudo, modelos animais têm limitações (toxinas agudas ou lesões induzidas, não necessariamente replicam totalmente a progressão crônica, heterogeneidade de espécies, doses, etc.).
Evidência clínica em humanos
Aqui a evidência é muito mais escassa, heterogênea, e os resultados são mistos. Alguns estudos/sistemas oferecem dados interessantes, outros não encontraram benefício claro.
Ensaios clínicos e estudos observacionais
- Segurança e tolerabilidade do CBD em PD
- Estudo aberto (open-label), dose escalonada com CBD (Epidiolex) em pacientes com tremor de repouso significativo: doses de 5 a 20-25 mg/kg/dia mantidas por 10-15 dias. Resultado: melhora nos escores totais e motores do MDS-UPDRS (≈17-25% de melhora), também melhora em sono noturno e descontrole emocional/comportamental. Mas muitos efeitos adversos, alguns leves, alguns moderados; alteração enzimática hepática em doses altas. PubMed
- Estudo randomizado curto com CBD + THC vs placebo
- Em estudo de 2 semanas, com dose final de ~191 mg de CBD + ~6 mg de THC/dia, em PD com escore motor elevado. Melhoras motoras no grupo tratado foram estatisticamente significativas em comparação ao baseline, mas diferença entre grupo tratado e placebo não foi significativa, provavelmente pela resposta placebo forte. Também alguns desfechos de sono, cognição, atividades diárias favoreceram placebo. Adversidades leves comuns. PubMed
- Uso a longo prazo de cannabis “whole-plant”
- Estudo retrospectivo de casos-controle com 152 pacientes, usando cannabis medicinal por ≥1 ano, comparados a grupo sem cannabis. Buscou diferenças nas doses equivalentes de levodopa, estágio de Hoehn & Yahr, sintomas cognitivos, depressivos e psicóticos. Resultados relativamente neutros no sentido de modificação da progressão clínica, mas houve dados de tolerância, efeitos adversos e limitação de conclusões por desenho observacional. PubMed
- Revisões sistemáticas recentes
- Uma revisão sistemática de 2023 (incluindo CBD, THC, nabilona) destacou melhora consistente em alguns sintomas motores comparados a placebo em alguns estudos, e melhora em sintomas não motores (dor, sintomas psiquiátricos) com CBD especialmente. Mas os autores enfatizam que os ensaios são poucos, de pequena duração, amostras pequenas, risco de viés e falta de padronização. PubMed+1
- Outra revisão observou que, apesar de uso frequente de cannabis por pacientes, os ensaios randomizados existentes não fornecem evidência suficiente para recomendar o uso regular para motorismo ou disfunções progressivas da doença. PubMed
- Nabilone para sintomas não motores
- Estudo “NMS-Nab”: uso de nabilone (agonista sintético de THC) para sintomas não motores de DP. Alguns resultados positivos em dor, distúrbios do sono, humor. Mas número de pacientes, duração, escopo limitados. SpringerLink
O que não foi provado até agora
- Não há provas clínicas robustas de que canabinoides retardam a progressão da doença em humanos: perda dopaminérgica, atrofia estrutural, disfunção dopaminérgica persistente, redução de α-sinucleína ou biomarcadores de progressão.
- Ensaios com duração maior são raros, e muitos outcomes dependem de autorrelato ou escalas clínicas subjetivas.
- Efeitos sobre discinesia relacionada à levodopa são incertos: alguns relatos positivos de uncontrolled studies, mas não confirmados consistentemente em RCTs.
- Cognição pode até piorar em alguns estudos, ou pelo menos não melhorar — risco potencial em uso com THC e doses mais altas.
- Efeitos adversos são comuns (fadiga, sonolência, tontura, efeitos gastrointestinais, alteração de enzimas hepáticas, etc.), especialmente com doses altas ou uso crônico. Alguns pacientes descontinuam.
Comparação entre evidências pré-clínicas e clínicas: onde estão os gaps?
| Aspecto | O que os modelos animais mostram | O que os estudos clínicos mostram / faltam |
|---|---|---|
| Neuroproteção / preservação dopaminérgica | Vários estudos: redução de morte neuronal, menor perda nigroestriatal, proteção frente a toxinas (6-OHDA, MPP+, etc.), diminuição de microglia ativada, menor α-syn agregada. PubMed+3PubMed+3PubMed+3 | Ainda não há ensaios de longo prazo que demonstrem que há preservação significativa de neurônios ou retardamento da progressão clínica ou estrutural. |
| Doses, formulações e via de administração | Nos modelos, uso de CBD isolado ou em modelos genéticos/toxinas, com doses padronizadas; também estudos celulares. | Nos humanos, uso variado (CBD isolado, CBD+THC, extratos, whole plant), variação grande de dose, variabilidade na pureza, biodisponibilidade; isso dificulta comparação. |
| Desfechos objetivos | Uso de medidas histológicas, imunohistoquímica, marcadores de apoptose, agregados de proteína, desempenho motor em testes animais. | Em humanos, escalas clínicas (MDS-UPDRS), autorrelato, sintomas não-motoras; raríssimos biomarcadores ou neuroimagem longitudinal com volumetria ou PET em estudos de canabinoides. |
| Tempo de seguimento | Normalmente curto (semanas a meses) em animais; alguns modelos monitoram por períodos médios da vida ou comparativos. | Ensaios humanos curtos (dias a poucas semanas), observacionais de um ano ou pouco mais; falta de ensaios com acompanhamento de 2-5 anos com desfechos de progressão. |
| Segurança | Em geral bom perfil nos animais, embora doses altas possam causar efeitos adversos; toxicidades específicas nem sempre testadas consistentemente. | Humanos relatam efeitos adversos leves/moderados; maior incidência em doses altas; alguns sinais preocupantes (enzimas hepáticas, cognitivos) em certos estudos. |
Benefícios potenciais conhecidos / sintomas que parecem responder melhor
Com base na literatura atual, os canabinoides parecem mais promissores para:
- Sintomas não motoras: dor, transtornos do sono, ansiedade, humor / depressão, psiquiátricos, qualidade de vida.
- Sintomas motores específicos em algumas circunstâncias: tremor de repouso, rigidez, espasmos, possivelmente bradicinesia leve/moderada em alguns estudos.
- Melhora de dor central e possivelmente redução de discinesias induzidas pela levodopa em alguns relatos não randomizados.
- Potencial modulação de sintomas psiquiátricos ou cognitivos — depende muito da formulação e dose (THC pode exacerbar ou induzir efeitos adversos cognitivos; CBD parece mais seguro nesse aspecto).
Riscos, efeitos adversos e advertências
- Efeitos adversos leves/moderados são comuns: sonolência, tontura, fadiga, sede, boca seca, alterações de apetite, disfunção cognitiva, alterações de concentração, etc. Neurology+1
- Efeitos hepáticos: no estudo open-label de CBD em doses altas, elevação de enzimas hepáticas foi observada em ~38% dos participantes na dose de 20-25 mg/kg/dia. PubMed
- Potencial de interações medicamentosas: via metabolismo hepático (CYPs) sobretudo para CBD e também para THC, podendo alterar níveis de levodopa ou outros medicamentos neurológicos/psiquiátricos.
- Questões cognitivas e psicóticas: THC em doses mais altas pode agravar confusão, delírios, alucinações, prejuízo cognitivo, particularmente em pessoas com DP avançada ou com demência.
- Tolerabilidade variada; alguns pacientes interrompem por efeitos adversos ou falta de benefício perceptível.
- Legalidade, padronização de produtos, pureza, contaminação, variação de conteúdo de THC/CBD são grandes questões fora dos ensaios controlados.
Panorama de ensaios em andamento
- Registro de ensaio brasileiro: estudo duplo-cego, randomizado, controlado por placebo, avaliando efeito combinado de THC + CBD nos sintomas motores e não motores da DP. Esse tipo de estudo é importante para confirmar ou refutar hipóteses. Ensaio Clínico
- Espere mais ensaios com formulações padronizadas, com desfechos objetiváveis, possivelmente uso de biomarcadores (como NfL, PET dopaminérgico, ressonância magnética volumétrica), para investigar tanto alívio de sintomas como modificação de curso.
Conclusão: o que se pode afirmar até agora
- Os dados pré-clínicos são promissores: canabinoides, especialmente o CBD, demonstram neuroproteção em modelos de DP; atenuam neuroinflamação; reduzem agregados proteicos; melhoram comportamentos motores/non-motoras nos animais.
- Em humanos, há indícios de benefício para sintomas não motores, algumas melhoras motoras em estudos curtos, com doses moderadas/altas de canabinoides, mas a evidência é insuficiente para afirmar que há modificação da progressão da doença.
- A segurança parece relativamente aceitável em uso controlado, embora haja risco de efeitos adversos, especialmente com THC ou doses elevadas, ou em pacientes idosos/comorbilidades.
- Por enquanto, canabinoides não devem substituir terapias modificadoras de doença ou tratamentos padrão de Parkinson, mas podem ter papel adjuvante para sintomas refratários, com aconselhamento cuidadoso.
Perspectivas para o futuro
Para avançar do estágio promissor para recomendações clínicas firmes, os seguintes passos parecem essenciais:
- Ensaios clínicos robustos, randomizados, duplo-cego, de longo prazo, com desfechos de progressão (neuroimagem, biomarcadores, seguimento ≥2-5 anos).
- Padronização de formulações: proporções CBD:THC definidas; pureza; produtos farmacêuticos regulados; mesma via de administração para permitir comparações.
- Estudo de dose-resposta, identificando doses mínimas eficazes e máximas toleráveis.
- Biomarcadores translacionais: uso de PET, RM, dosagem de α-sinucleína, NfL, marcadores inflamatórios; correlação destes com alterações clínicas.
- Avaliar interações medicamentosas, particularmente em regimens com muitos fármacos (levodopa, agonistas, inibidores de MAO, etc.), para segurança.
- Selecionar subgrupos de pacientes que possam se beneficiar mais (estádio da doença, perfil de sintomas motoras vs não motoras, presença de comprometimento cognitivo, etc.).
- Avaliar qualidade de vida e desfechos do paciente (sono, dor, humor, cognição), não apenas escores motores.
Mensagem prática para clínicos
- Discuta com o paciente os benefícios potenciais vs riscos, informando que o uso de canabinoides para Parkinson é experimental para muitos propósitos, especialmente para modificação de curso.
- Se utilizado, considere começar com formulação com baixos níveis de THC, ou CBD isolado, especialmente em pacientes com risco cognitivo, histórico psiquiátrico ou idoso.
- Monitorar segurança: função hepática, interações medicamentosas, função cognitiva, efeitos psíquicos.
- Não substituir terapias padrão modificadoras de doença; considerar adjuvância em sintomas refratários, com acompanhamento sistemático.
- Sempre que possível, encaminhar ou encorajar participação em ensaios clínicos bem desenhados.
Referências-chave
- Effects of cannabinoids in Parkinson’s disease animal models: um meta-análise pré-clínica. PubMed
- Safety and tolerability of cannabidiol in Parkinson disease: open-label estudo. PubMed
- Short-Term Cannabidiol with Δ-9-Tetrahydrocannabinol in Parkinson’s Disease: Randomized Trial. PubMed
- Medical cannabis as an alternative therapeutics for Parkinson’s disease: systematic review. PubMed
- Neuroprotective and Symptomatic Effects of Cannabidiol in Animal Model de 6-OHDA. PubMed

