Cannabis Medicinal no Tratamento do Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT): Evidências Neurobiológicas e Clínicas

Introdução

O Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT) é uma condição psiquiátrica grave que se desenvolve após exposição a eventos traumáticos, caracterizada por revivescências (flashbacks), pesadelos recorrentes, hipervigilância, evitação emocional e distúrbios do sono.

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), cerca de 3,9% da população mundial apresentará TEPT ao longo da vida, e entre 10% e 20% dos expostos a traumas graves desenvolverão o transtorno.

Apesar da disponibilidade de antidepressivos ISRS/IRSN e terapias cognitivas, uma parte significativa dos pacientes exibe resposta parcial, recaídas frequentes e sintomas residuais — especialmente relacionados a sono, memória emocional e ansiedade persistente.

Nesse contexto, a Cannabis Medicinal surge como uma alternativa inovadora, atuando em mecanismos neurobiológicos centrais do TEPT, como o sistema endocanabinoide, modulação da amígdala, regulação do eixo HHA e interferência na reconsolidação da memória traumática.


1. A Neurobiologia do TEPT e o Sistema Endocanabinoide

O TEPT é marcado por hiperatividade da amígdala, hipofunção do córtex pré-frontal ventromedial e redução do volume hipocampal. Essas alterações produzem falhas na extinção da memória do medo e persistência das respostas emocionais traumáticas.

O Sistema Endocanabinoide (SEC) desempenha papel crítico na extinção da memória aversiva e na resiliência ao estresse.

Componentes relevantes:

  • Anandamida (AEA) e 2-AG: endocanabinoides que reduzem a excitabilidade da amígdala;
  • Receptores CB1: modulam neurotransmissão glutamatérgica e GABAérgica;
  • FAAH: enzima degradadora da anandamida.

Estudos mostram que pacientes com TEPT apresentam níveis plasmáticos reduzidos de anandamida e hiperexpressão de FAAH, levando à hipoatividade do SEC (Neumeister et al., Mol Psychiatry, 2013).

A modulação desse sistema por canabinoides — principalmente o CBD e, em alguns casos, o THC em baixas doses — pode restaurar o equilíbrio emocional, reduzir hipervigilância e melhorar o sono.


2. Mecanismos Neurobiológicos da Cannabis no TEPT

A ação terapêutica da cannabis no TEPT é multifatorial e envolve receptores canabinoides, serotoninérgicos e dopaminérgicos, além de efeitos sobre a neuroplasticidade.

a) Modulação do medo e extinção da memória traumática

  • O CBD facilita a extinção do medo condicionado e atenua a reconsolidação da memória aversiva, reduzindo revivescências.
    (Stern et al., Neuropharmacology, 2012)
  • O THC, em baixas doses, atua nos receptores CB1 da amígdala, diminuindo respostas autonômicas ao trauma.

b) Ativação dos receptores 5-HT1A

  • O CBD estimula receptores serotoninérgicos, reduzindo ansiedade e sintomas de pânico, frequentes no TEPT.
    (Campos et al., Front Pharmacol, 2012)

c) Redução da hiperatividade do eixo HHA

  • O CBD normaliza a liberação de cortisol e reduz o estado de alerta crônico, melhorando sono e humor.
    (Blessing et al., Neurotherapeutics, 2015)

d) Melhora do sono e redução de pesadelos

  • Formulações contendo CBD + THC auxiliam no restabelecimento do sono REM e redução de sonhos traumáticos.
    (Bonn-Miller et al., J Psychoactive Drugs, 2018)

e) Efeitos anti-inflamatórios e neuroprotetores

  • A ativação do CB2 e a redução da neuroinflamação contribuem para resiliência neural e restauração da plasticidade hipocampal.

3. Evidências Clínicas

3.1 Estudos Observacionais

  • Elms et al., 2019 – J Altern Complement Med
    Estudo com 11 pacientes com TEPT tratados com CBD oral (25–100 mg/dia) por 8 semanas.
    91% relataram melhora da frequência e intensidade dos pesadelos e melhora geral do sono.
  • Bonn-Miller et al., 2018 – J Psychoactive Drugs
    Pacientes com TEPT relataram redução de sintomas globais em 75% dos casos com uso de THC + CBD em formulações balanceadas.
  • Jetly et al., 2015 – Can J Psychiatry
    Em veteranos de guerra, THC 10 mg à noite reduziu pesadelos traumáticos e melhorou a qualidade do sono.

3.2 Ensaios Clínicos e Revisões

  • Passos et al., 2022 – Front Psychiatry
    Revisão aponta que o CBD facilita a extinção de memórias traumáticas e reduz a ansiedade antecipatória em TEPT.
  • Roitman et al., 2014 – Clin Neuropharmacol
    O THC em baixa dose (5 mg/dia) reduziu hipervigilância e reações exageradas ao estresse.
  • Blessing et al., 2015 – Neurotherapeutics
    Concluíram que o CBD é ansiolítico eficaz e auxilia na regulação emocional e no sono, sem causar dependência.

4. Protocolos Clínicos e Dosagem

O tratamento com cannabis no TEPT deve ser individualizado, considerando sintomas predominantes (ansiedade, pesadelos, insônia ou flashbacks).

FormulaçãoDose InicialDose TerapêuticaIndicação Principal
CBD isolado25 mg/dia100–200 mg/diaAnsiedade, revivescência, insônia leve
CBD:THC (20:1)25 mg CBD + 1 mg THC/diaaté 100 mg CBD + 5 mg THC/diaPesadelos, sono REM alterado
THC microdosado (<2,5 mg)à noite2,5–5 mgRedução de sonhos vívidos
  • Via sublingual (óleos): absorção rápida e biodisponível.
  • Administração noturna: melhora da latência do sono e redução de despertares.
  • Início gradual e titulação lenta para minimizar efeitos psicoativos.

5. Segurança e Tolerabilidade

O CBD é considerado seguro, bem tolerado e sem potencial de abuso, segundo a OMS (2018).

O THC, em doses baixas, pode ser útil; contudo, doses altas (>10 mg) podem induzir ansiedade, taquicardia ou exacerbar memórias traumáticas, devendo ser usado com cautela.

Efeitos adversos leves:

  • Sonolência
  • Boca seca
  • Fadiga
  • Alteração de apetite

Interações:

  • CBD pode inibir CYP3A4 e CYP2C19, alterando níveis de benzodiazepínicos e antidepressivosmonitoramento médico é essencial.

6. Integração com Outras Terapias

A cannabis medicinal deve ser vista como complementar a abordagens baseadas em evidências, como:

  • Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC);
  • Terapia de Exposição Prolongada;
  • Mindfulness;
  • Reabilitação do sono.

Essa abordagem integrada potencializa resultados clínicos duradouros e resiliência emocional.


7. Perspectivas Futuras

A pesquisa atual busca:

  • Identificar biomarcadores endocanabinoides para prever resposta terapêutica;
  • Desenvolver formulações personalizadas (CBD-puro, broad ou full spectrum);
  • Explorar terapia combinada CBD + psicoterapia assistida.

A tendência é consolidar o uso da cannabis como ferramenta regulatória da memória emocional, permitindo reconsolidação segura de eventos traumáticos.


Conclusão

A Cannabis Medicinal, sobretudo por meio do Canabidiol (CBD) e formulações balanceadas com THC em microdoses, representa uma estratégia terapêutica promissora e segura para o manejo do Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT).

Ao modular o sistema endocanabinoide, facilitar a extinção de memórias traumáticas, reduzir ansiedade e hipervigilância, e melhorar o sono, a cannabis oferece abordagem multifacetada e integrativa — especialmente útil em casos refratários às terapias convencionais.

A prescrição médica criteriosa, o acompanhamento clínico contínuo e a integração com psicoterapia baseada em evidências são fundamentais para garantir eficácia, segurança e desfechos sustentáveis.


Referências

  1. Neumeister A et al. Mol Psychiatry. 2013;18(4):538–544.
  2. Elms L et al. J Altern Complement Med. 2019;25(4):392–397.
  3. Bonn-Miller MO et al. J Psychoactive Drugs. 2018;50(4):367–374.
  4. Passos IC et al. Front Psychiatry. 2022;13:845530.
  5. Stern CAJ et al. Neuropharmacology. 2012;62(1):373–382.
  6. Campos AC et al. Front Pharmacol. 2012;3:155.
  7. Blessing EM et al. Neurotherapeutics. 2015;12(4):825–836.
  8. Jetly R et al. Can J Psychiatry. 2015;60(6):255–263.
  9. Roitman P et al. Clin Neuropharmacol. 2014;37(2):41–44.
  10. Organização Mundial da Saúde (OMS). Critical Review Report: Cannabidiol (CBD), 2018.