Tratamento com cannabis para depressão — revisão crítica

Resumo: A utilização de Cannabis sativa e seus derivados (THC, CBD, extratos combinados e produtos medicinais) para o tratamento da depressão tem atraído interesse clínico e público, mas a evidência científica é ainda incipiente, heterogênea e, em grande parte, inconclusiva. Há sinais pré-clínicos e alguns dados clínicos promissores especialmente para o canabidiol (CBD), porém estudos observacionais encontram associação entre uso regular de cannabis (particularmente início precoce e uso pesado) e maior risco de sintomas depressivos e de transtornos do humor. Nesta revisão discutimos mecanismos biológicos plausíveis, resumo das evidências clínicas (ensaios clínicos, revisões e estudos observacionais), efeitos adversos e riscos, orientação prática para clínicos e lacunas de pesquisa.


1. Introdução e importância clínica

A depressão maior (MDD) é uma causa líder de incapacidade global. Dado que uma parcela significativa dos pacientes apresenta resposta parcial ou intolerância aos antidepressivos convencionais, alternativas farmacológicas e terapêuticas são buscadas — inclusive compostos derivados da cannabis. Contudo, enquanto muitos pacientes relatam uso de cannabis para “auto-medicação” de sintomas depressivos, a literatura mostra resultados contraditórios: estudos pré-clínicos e alguns pequenos ensaios sugerem efeitos antidepressivos de certos compostos (notadamente CBD), ao passo que meta-análises longitudinais indicam uma associação entre uso de cannabis e aumento do risco de sintomas depressivos em populações jovens ou com uso intenso. PMC+2PMC+2


2. Farmacologia e mecanismos de ação plausíveis

2.1 Sistema endocanabinoide e depressão

O sistema endocanabinoide (SEC) — receptores CB1/CB2, ligantes endógenos (anandamida, 2-AG) e enzimas degradadoras — regula humor, stress, plasticidade sináptica e eixo HPA. Modulações do SEC podem afetar neurotransmissores clássicos (serotonina, noradrenalina, dopamina) e processos inflamatórios associados à depressão. Esses mecanismos biológicos sustentam a hipótese de que agonistas ou moduladores do SEC poderiam impactar sintomas depressivos. PMC+1

2.2 THC vs CBD: ações contrastantes

  • Δ9-THC (psicoativo) é agonista parcial de CB1 e pode produzir efeitos eufóricos ou ansiógenos dependendo da dose/tolerância; seu efeito sobre o humor é complexo e dose-dependente, podendo aliviar sintomas em curto prazo ou exacerbar ansiedade/depressão em uso crônico/heavy.
  • Canabidiol (CBD) não é psicoativo na mesma medida; atua de forma pleiotrópicas (modulação indireta de CB1/CB2, agonismo parcial em 5-HT1A, efeitos anti-inflamatórios e neuroprotetores) e tem maior suporte experimental como candidato a tratamento ansiolítico/antidepressivo. PMC+1

3. Evidência clínica — ensaios controlados e revisões

3.1 Ensaios clínicos com CBD

Ensaios clínicos randomizados e controlados especificamente para depressão são escassos. Estudos pequenos e ensaios em transtornos relacionados (ansiedade, PTSD, dependência) mostram sinais de eficácia do CBD em reduzir ansiedade e melhorar sintomas que podem coocorrer com depressão; ensaios direcionados a MDD estão em andamento (vários registros clínicos como NCT03310593 e outros). Enquanto isso, revisões de 2019–2024 ressaltam potencial promissor do CBD, mas concluem que evidência de alta qualidade ainda é insuficiente para recomendações terapêuticas generalizadas. ClinicalTrials.gov+2PMC+2

3.2 Estudos com formulações à base de planta e THC

Ensaios que testam preparações com THC (isolado ou combinado com CBD) são heterogêneos: alguns estudos observacionais e séries clínicas reportam melhora subjetiva do humor em pacientes que usam cannabis medicinal, mas randomizados robustos para MDD são raros. Revisões recentes sobre eficácia clínica geral de produtos medicinais mostram relatos de redução na severidade depressiva em cohorts tratados com cannabis medicinal, porém estudos são tipicamente não-randomizados, com risco de viés e de efeitos adversos não trivial. PubMed+1

3.3 Síntese das revisões e meta-análises

Meta-análises longitudinais e revisões sistemáticas atualizadas indicam associação estatisticamente significativa entre uso de cannabis e maior probabilidade de desenvolver sintomas depressivos ao longo do tempo (efeito modesto a moderado; maior risco em iniciadores precoces e usuários pesados). Ao mesmo tempo, revisões clínicas sobre uso terapêutico descrevem resultados mistos e concluem que falta ainda evidência robusta para recomendar cannabis (THC) como tratamento antidepressivo; CBD é apontado como candidato promissor, exigindo RCTs maiores. PMC+1

(Carga de evidência: os leitores devem entender que, enquanto há sinais pré-clínicos e pequenos estudos positivos, as revisões observacionais levantam preocupações sobre risco aumentado de depressão associado ao uso intensivo de cannabis.) PubMed+1


4. Riscos e eventos adversos relevantes para pacientes com depressão

  • Piora de sintomas psiquiátricos: uso pesado, início na adolescência e produtos com alto teor de THC estão associados a maior risco de piora de humor, ideação suicida em alguns estudos e aumento do risco de psicose em indivíduos vulneráveis. PMC+1
  • Dependência e transtorno por uso de cannabis (CUD): risco significativo com uso crônico; CUD pode agravar prognóstico depressivo. jsad.com
  • Efeitos cognitivos e funcionalidade: déficits de atenção/ memória com uso prolongado, relevantes em pacientes deprimidos. MDPI
  • Riscos cardiovasculares e outros: evidências emergentes (2024–2025) sugerem sinais de aumento de eventos cardiovasculares em usuários regulares — atenção em pacientes com comorbidades. The Guardian

5. Quando considerar — recomendações práticas (para clínicos)

  1. Não substituir terapias baseadas em evidência. Primeiro-line: psicoterapia (TCC, TMS em casos indicados), antidepressivos com evidência, avaliação de causas secundárias e comorbidades. Use cannabis medicinal para depressão somente em contexto de estudo clínico ou em situações excepcionais com consentimento informado detalhado. PubMed
  2. Avaliação de risco individual: histórico de psicose, uso precoce/forte de cannabis, ideação suicida, cardiopatias, uso concomitante de outras substâncias — contraindicam ou exigem cautela extrema. PMC+1
  3. Preferir compostos com melhor perfil de segurança (pesquisa): CBD tem menor psicoatividade e mais dados experimentais; se houver uso compassivo, optar por preparações padronizadas, com controle de qualidade farmacêutica. Monitorizar interações (CYP450) e efeitos adversos. PMC+1
  4. Rastreamento e monitorização: avaliar risco de CUD, escalas de depressão validadas (PHQ-9), acompanhamento frequente nas primeiras semanas, planejamento para desmame e intervenção em caso de agravamento. jsad.com

6. Diretrizes regulamentares e de prática

Atualmente não existem diretrizes internacionais que recomendem cannabis ou THC como tratamento de rotina para MDD. Alguns países ou programas de cannabis medicinal permitem indicações amplas a critério médico, mas a comunidade psiquiátrica e revisões recentes pedem cautela e mais estudos randomizados para apoiar indicação formal. Programas regulamentares também variam quanto à disponibilidade de CBD purificado (p.ex. Epidiolex) versus extratos com THC. PubMed+1


7. Evidência emergente e lacunas de pesquisa

Principais lacunas:

  • Escassez de RCTs de alta qualidade em MDD avaliando CBD, THC isolado e extratos padronizados; necessidade de estudos com tamanho amostral adequado, duração prolongada e desfechos funcionais. ClinicalTrials.gov+1
  • Heterogeneidade de produtos e doses: dificulta síntese; padronização (CBD:THC ratio, via de administração) é imprescindível. Cannabis Evidence
  • Subgrupos biológicos: identificar fenótipos (genética, início da doença, comorbidades) que possam beneficiar — p.ex., pacientes com inflamação sistêmica elevada, distúrbios do sono concomitantes, ou resistência a antidepressivos. MDPI

8. Sugestão de um algoritmo pragmático (resumo para clínicos)

  1. Tratar MDD por terapias estabelecidas primeiro.
  2. Se paciente já usa cannabis por autocuidado: avaliar padrão de uso, produto (THC vs CBD), histórico psiquiátrico, risco de CUD; monitorizar e tentar otimizar tratamentos padrão concomitantes. PMC
  3. Considerar enrolamento em estudo clínico quando disponível (prioritário). ClinicalTrials.gov
  4. Em programas de uso compassivo, preferir CBD padronizado; usar doses estudadas em ensaios (ex.: ensaios de ansiedade/depressão testaram 300-600 mg/dia de CBD em estudos de curta duração, embora não haja consenso de dose para MDD). Monitorização estreita e plano claro de descontinuação. ScienceDirect+1

9. Mensagem-chave para pacientes (versão curta para usar em consultório)

  • Existem sinais de que compostos da cannabis — especialmente o CBD — podem ter efeitos benéficos em ansiedade e possivelmente em sintomas depressivos, mas a evidência não é suficiente para recomendar o uso rotineiro como tratamento para depressão.
  • Uso regular e início na adolescência estão associados a maior risco de sintomas depressivos e dependência.
  • Se considerar usar cannabis medicinal, discuta com seu médico, prefira produtos padronizados, assine consentimento informado e participe, sempre que possível, de estudos clínicos. PMC+1

10. Conclusão

A pesquisa sobre cannabis e depressão está em expansão: o CBD aparece como a via mais promissora do ponto de vista pré-clínico e por dados iniciais, mas a evidência clínica robusta ainda é insuficiente. Ao mesmo tempo, estudos observacionais consistentes apontam para um risco aumentado de sintomas depressivos e outros eventos adversos associados ao uso intenso/precose de cannabis, especialmente produtos ricos em THC. Portanto, na prática clínica atual, cautela, priorização de tratamentos com evidência estabelecida e preferência por estudos clínicos controlados são as abordagens recomendadas.


Referências selecionadas (fontes para leitura rápida)

  1. García-Gutiérrez MS, et al. Cannabidiol: A Potential New Alternative for the Treatment of Anxiety, Mood, and Related Disorders. (revisão). PMC
  2. Wang Y, et al. Bidirectional associations between depressive symptoms and cannabis use: systematic review & meta-analysis. 2022. PMC
  3. Churchill V, et al. The association between cannabis and depression: an updated systematic review and meta-analysis (Psychological Medicine, 2025) — evidência longitudinal sobre risco. PMC+1
  4. Specka M, et al. Effectiveness of Medical Cannabis for the Treatment of Depression — estudo/avaliação 2024 (coortes de uso medicinal). PubMed
  5. Haller J, et al. Herbal Cannabis and Depression: A Review of Findings. (2024) — revisão abrangente das associações observacionais e ensaios. MDPI