Resumo:
As náuseas e vômitos induzidos por quimioterapia (CINV) resultam de uma complexa interação neuroquímica entre o trato gastrointestinal e o sistema nervoso central. Nas últimas décadas, a descoberta do sistema endocanabinoide (SEC) e de seus receptores CB1 e CB2 revelou um papel modulador importante nas vias da êmese. Este artigo analisa em profundidade os mecanismos de ação dos canabinoides no controle de CINV, integrando achados de estudos pré-clínicos e clínicos, e discutindo as perspectivas terapêuticas.
1. Introdução: um desafio persistente na oncologia
Apesar dos avanços com antagonistas 5-HT3, antagonistas NK1 e corticoides, muitos pacientes ainda apresentam náuseas e vômitos refratários à quimioterapia — especialmente os que recebem agentes altamente emetogênicos, como cisplatina.
Esses sintomas, além de reduzirem a adesão ao tratamento, comprometem o estado nutricional, emocional e funcional do paciente.
Com a elucidação do sistema endocanabinoide, surgiu uma nova via terapêutica capaz de atuar tanto na periferia quanto no sistema nervoso central, oferecendo uma abordagem multifatorial para o controle de CINV.
2. O Sistema Endocanabinoide (SEC): panorama geral
O SEC é composto por três elementos principais:
- Receptores canabinoides:
- CB1, predominantemente no sistema nervoso central (SNC), em especial nas regiões envolvidas no controle da êmese — núcleo do trato solitário, área postrema e bulbo dorsal vagal.
- CB2, localizados principalmente em células imunes e tecidos periféricos, com menor envolvimento direto nas vias da êmese, mas papel modulador inflamatório.
- Ligantes endógenos (endocanabinoides):
- Anandamida (AEA) e 2-araquidonoilglicerol (2-AG), derivados de ácidos graxos, sintetizados sob demanda.
- Enzimas de síntese e degradação:
- FAAH (Fatty Acid Amide Hydrolase), que degrada anandamida.
- MAGL (Monoacylglycerol Lipase), que degrada 2-AG.
O SEC age como um sistema homeostático, regulando dor, apetite, humor, resposta imune e, crucialmente, nausea e vômito.
3. A fisiopatologia da êmese: onde atuam os canabinoides
A êmese é controlada por um “centro do vômito” localizado no tronco encefálico, particularmente na área postrema (zona gatilho quimiorreceptora) e no núcleo do trato solitário (NTS).
3.1. Vias centrais
- Durante a quimioterapia, há liberação de serotonina (5-HT) no trato gastrointestinal, ativando receptores 5-HT3 vagais aferentes, que transmitem o sinal ao NTS e área postrema.
- A ativação de receptores dopaminérgicos D2 e neurocinina-1 (NK1) também contribui para o estímulo emético.
3.2. Modulação canabinoide
Os canabinoides, ao ativarem receptores CB1 no tronco encefálico e nas terminações vagais, inibem a liberação de neurotransmissores pró-eméticos (serotonina, dopamina, substância P), reduzindo assim o estímulo para a êmese.
📌 Estudo pré-clínico (Sharkey et al., 2014): demonstrou que agonistas CB1 reduzem a êmese induzida por cisplatina em modelos animais, enquanto antagonistas CB1 anulam o efeito.
4. Evidências neurobiológicas: o papel central do receptor CB1
O receptor CB1 é o principal mediador da ação antiemética dos canabinoides. Estudos de neuroimagem mostram alta densidade de CB1 nas seguintes áreas:
- Núcleo do trato solitário (NTS)
- Área postrema
- Dorsal vagal complex (DVC)
- Amígdala e córtex insular, envolvidos na percepção subjetiva da náusea
4.1. Mecanismo molecular
A ativação de CB1:
- Inibe adenilato ciclase, reduzindo AMPc;
- Modula canais de cálcio e potássio, reduzindo liberação de neurotransmissores;
- Diminui excitabilidade neuronal nas vias eméticas;
- Promove dessensibilização das vias serotoninérgicas 5-HT3.
4.2. Efeito antiemético bifásico
Curiosamente, estudos mostram que doses muito altas de canabinoides podem paradoxalmente induzir náusea — fenômeno atribuído à dessensibilização de CB1 ou ativação de outras vias (TRPV1). Isso reforça a necessidade de titulação cuidadosa da dose.
5. Evidência clínica de correlação mecanicista
Ensaios clínicos com dronabinol e nabilone confirmam a relevância dos receptores CB1 na modulação da êmese.
- Weiss et al. (1985, N Engl J Med): dronabinol mostrou eficácia superior ao placebo na prevenção de CINV em pacientes tratados com cisplatina.
- Cotter (2009): nabilone reduziu significativamente a intensidade de náuseas tardias quando usado como adjuvante.
Estudos de PET-scan evidenciam redução da atividade do NTS após administração de canabinoides, corroborando a ação central.
6. Interação com o sistema serotoninérgico e dopaminérgico
Os canabinoides exercem modulação cruzada com outros sistemas neurotransmissores:
- Inibição da liberação de 5-HT nos terminais vagais, reduzindo o estímulo 5-HT3.
- Diminuição da liberação de dopamina em regiões mesolímbicas e mesocorticais.
- Atenuação da substância P, que ativa receptores NK1, integrando a via final da êmese.
Essa ação multimodal justifica o uso dos canabinoides como adjuvantes a antieméticos serotoninérgicos e NK1.
7. Implicações clínicas: da teoria à prática
Com base nesses mecanismos, o uso clínico de agonistas CB1 (como dronabinol e nabilone) é mais eficaz quando:
- Utilizado em CINV refratária, após falha de antagonistas 5-HT3/NK1;
- Empregado em doses baixas e tituladas, para maximizar efeito antiemético e minimizar efeitos psicoativos;
- Considerado em pacientes jovens e sem histórico psiquiátrico grave;
- Associado a monitorização rigorosa, especialmente em uso prolongado.
8. Perspectivas futuras: além do THC
Pesquisas atuais exploram novas moléculas que modulam o SEC sem efeitos psicotrópicos, como:
- Inibidores de FAAH e MAGL, que aumentam os níveis de endocanabinoides endógenos;
- Agonistas seletivos de CB2, com potencial para reduzir inflamação periférica e sintomas gastrointestinais;
- Canabidiol (CBD), com propriedades ansiolíticas e antieméticas indiretas, modulando receptores serotoninérgicos 5-HT1A.
Essas abordagens podem ampliar a janela terapêutica, oferecendo eficácia com menor risco psicoativo.
9. Conclusão
Os canabinoides exercem um papel modulador central e periférico nas vias da êmese, atuando por meio de receptores CB1 no tronco encefálico e mecanismos cruzados com sistemas serotoninérgico e dopaminérgico.
Sua ação integrada justifica o uso clínico em CINV refratária, e o entendimento detalhado desses mecanismos orienta a escolha terapêutica e o manejo seguro.
Com o avanço da neurofarmacologia, terapias baseadas no SEC prometem um controle mais eficaz e personalizado das náuseas e vômitos associados à quimioterapia.
Referências selecionadas
- Sharkey KA, Darmani NA, Parker LA. Regulation of nausea and vomiting by cannabinoids and the endocannabinoid system. Eur J Pharmacol. 2014;722:134–146.
- Parker LA, Rock EM, Limebeer CL. Regulation of nausea and vomiting by cannabinoids. Br J Pharmacol. 2011;163(7):1411–1422.
- Weiss JF et al. Oral delta-9-tetrahydrocannabinol in chemotherapy-induced nausea and vomiting. N Engl J Med. 1985;312:775–778.
- Cotter J. Efficacy of nabilone in chemotherapy-induced nausea and vomiting: a systematic review. J Support Oncol. 2009;7(3):100–108.
- Pertwee RG. The pharmacology of cannabinoid receptors and their ligands. Int J Obes (Lond). 2006;30:S13–S18.
- ASCO Guidelines: Cannabis and Cannabinoids in Cancer Symptom Management, 2024.

