Cannabis e Síndrome de Tourette: evidências científicas para além das anedotas

A Síndrome de Tourette (ST) é um transtorno neuropsiquiátrico caracterizado por tics motores e vocais, frequentemente com início na infância, variabilidade na gravidade e comorbidades comuns como transtorno obsessivo-compulsivo (TOC), déficit de atenção, ansiedade, distúrbios do sono, etc. As terapias padrão incluem neurolépticos, agonistas dopaminérgicos, terapias comportamentais, mas muitos pacientes continuam com tics graves ou efeitos adversos das medicações.

Nos últimos anos, o uso de cannabis medicinal ou canabinoides (THC, CBD ou combinações) emergiu como uma alternativa em casos refratários. Mas o que a literatura científica realmente comprova até agora?

Mecanismos biológicos plausíveis

Antes de falar de estudos clínicos, vale entender por que canabinoides poderiam ter efeito nos tics e nas comorbidades da ST:

  • O sistema endocanabinoide (receptores CB1 e CB2, e ligantes endógenos) modula neurotransmissores como dopamina, GABA, glutamato, além de influenciar plasticidade sináptica, modulação do circuito cortico-estriado-tálamo-cortical, que está implicado nos tics.
  • THC é agonista (parcial) do receptor CB1, com efeitos inibitórios de liberação de neurotransmissores excitatórios, o que pode reduzir a hiperexcitabilidade associada a tics.
  • Possível papel antiinflamatório e modulador de estresse oxidativo, embora menos estudado na ST especificamente.
  • CBD parece ter ação moduladora (não psicoativa), podendo contrabalançar efeitos adversos do THC, e ter ainda efeitos ansiolíticos e de melhora de sono ou humor, o que pode indiretamente reduzir intensidade dos tics.

Evidência clínica em humanos

Aqui estão os principais estudos com pacientes humanos, mostrando benefícios e limitações.

EstudoTipo / DesenhoPopulação / DuraçãoPrincipais achadosEfeitos adversos / Limitações
Δ⁹-THC vs placebo (6-semanas) – estudo randomizado, duplo-cego, controlado com placebo. PubMed24 pacientes com ST adultos6-semanas de tratamento com até 10 mg/dia de THCHouve redução significativa em vários escores de tics (YGTSS, TS-CGI, etc.) comparado a placebo em visitas intermediárias; melhora percebida dos tics; efeitos persistiram no tratamento. PubMedQueda de pacientes por vários motivos; algumas desistências; efeitos adversos leves; duração limitada; nenhum dado robusto de longo prazo.
THX-110 (THC + Palmitoiletanolamida (PEA)) – estudo aberto piloto de 12 semanas. Psychiatry Online16 adultos com ST refratária12 semanas mais extensão de seguimento (24-semanas para alguns)Redução média de tics de mais de 20% no YGTSS (≈7 pontos); melhora perceptível já na primeira semana; muitos pacientes escolheram continuar no longo prazo. Psychiatry OnlineEstudo não-controlado; viés de expectativa; efeitos adversos frequentes, ajuste de dose necessário; amostra pequena.
Estudo oral THC + CBD (óleo) vs placebo – duplo-cego, crossover. PubMed+122 participantes adultos com ST graveCada período de tratamento com óleo 1:1 THC:CBD por 6 semanas, seguido por placebo, com “wash-out” entre fasesRedução significativa dos tics conforme YGTSS: média de ~8.9 pontos no grupo ativo vs ~2.5 no placebo; também diminuição da ansiedade, sintomas obsessivo-compulsivos; correlação entre níveis plasmáticos de metabólitos do THC e melhora. PubMedEfeitos cognitivos adversos relatados (lentidão, lapsos de memória, concentração reduzida); algumas pessoas podem não tolerar; efeito moderado; duração relativamente curta; pode haver variabilidade individual grande.
Estudo aberto prospectivo com cannabis medicinal (modo livre de uso) (Adultos) – Israel. PubMed18 pacientes adultos com GTS12 semanas de seguimentoRedução média de ~38% no YGTSS-Total; redução ~20% em “premonitory urge” (PUTS); boa tolerância; melhora clinicamente relevante. PubMedFalta de controle com placebo; uso de modos variados (inalado, fumado, etc.); potencial viés de seleção; acompanhamento de longo prazo limitado; efeitos adversos menos bem quantificados.
Estudo com doses únicas de vaporização de diferentes fórmulas – crossover, pacientes adultos. Liebert Publishing12 adultos, 9 completaramDose única de cada produto vaporizado (THC 10%, THC/CBD 9/9%, CBD 13%, placebo), medido em horas após administraçãoO produto com THC puro 10% mostrou efeitos menores porém melhoras nos “urges” premonitórios, na escala de desconforto, no “clinical global impression” comparado a placebo; efeitos menores ou nulos para CBD puro; correlação entre níveis de THC plasmático e resposta. Liebert PublishingEfeito pontual (doses únicas), não efeitos de longo prazo; volume pequeno de pacientes; efeitos adversos sensoriais, cognitvos, psicomotores mais comuns com THC 10%; possível unblinding (pacientes identificam se receberam ou não THC).

Magnitude dos benefícios observados

  • Reduções de tics variam bastante: desde ~20-30% em estudos abertos até ~8-10 pontos no YGTSS em ensaios controlados (dependendo da gravidade basal).
  • Melhora de “premonitory urges” (sensações que precedem os tics) observada em vários estudos, o que é clinicamente relevante porque essas urgências são muito desconfortáveis e contribuem para a gênese dos tics ou exacerbação.
  • Benefício adicional para comorbidades: muitos pacientes relataram melhora de ansiedade, humor, sono, pensamentos obsessivo-compulsivos, qualidade de vida.

Limitações importantes

Apesar de sinais promissores, há várias limitações que ainda impedem considerar cannabis / canabinoides como terapia de primeira linha ou de rotina para Tourette:

  • Muitos estudos são abertos ou prospectivos não controlados, sujeitos a viés de expectativa e efeito placebo.
  • Ensaios controlados são em geral de curta duração (semanas) com seguimentos limitados, e não avaliaram efeitos a longo prazo (anos), tolerância, dependência, complicações cognitivas ou psicológicas persistentes.
  • Doses e formulações heterogêneas: THC isolado, combinações THC/CBD, diferentes vias (oral, vaporizado, fumado/inalação), diferentes proporções de THC:CBD. Isso dificulta generalizar sobre o que seria “dose ideal” ou “formulação ideal”.
  • Efeitos adversos, especialmente relacionados ao THC: efeitos cognitivos (lentidão, lapsos de memória, concentração), sonolência, efeitos psicomotores, possíveis risco de psico-ativação, principalmente em pacientes jovens ou com predisposição psicótica.
  • Questões legais, de padronização, pureza de produto, rotulagem, potência, contaminação, que variam muito entre jurisdições e produtos disponíveis.
  • Em populações pediátricas (crianças/adolescentes), há ainda menos dados seguros sobre uso regular, efeitos no desenvolvimento cognitivo, no crescimento ou risco de dependência ou efeitos psíquicos adversos.

Perspectivas e recomendações práticas

Com base nas evidências existentes, estas são algumas orientações ou hipóteses razoáveis para clínicos:

  1. O uso de cannabis medicinal ou canabinoides pode ser considerado em casos refratários, quando tratamentos padrão não foram eficazes ou não são tolerados, especialmente em adultos.
  2. Proporção THC:CBD pode ser importante: combinações podem reduzir efeitos adversos do THC puro; CBD parece útil para ansiedade, sono, humor, possivelmente melhorar tolerância ao tratamento.
  3. Iniciar com doses baixas de THC, escalar lentamente, privilegiar formulações orais ou vaporizadas com controle de dose, e monitorar efeitos adversos cognitivos e psicológicos.
  4. Avaliar comorbidades (ansiedade, TOC, distúrbios do sono) porque melhora desses sintomas secundários pode amplificar o benefício global.
  5. Necessário acompanhamento clínico próximo, preferencialmente em contexto de estudo ou protocolo institucional, para registrar eficácia, efeitos adversos, tolerância, mudanças de dose, dependência.
  6. Importância de informar o paciente/família sobre o que se sabe e não se sabe: que há evidência de benefício mas não é garantia; que há riscos; decisões devem ser compartilhadas.

Conclusão

  • evidência científica razoável de que canabinoides, especialmente formulações envolvendo THC (só ou combinado com CBD), reduzem tics, urgências premonitórias e melhoram comorbidades na Síndrome de Tourette, em adultos.
  • O benefício é moderado a significativo em muitos casos, especialmente em pacientes refratários, embora não uniforme.
  • Ainda falta comprovação de longo prazo, dados sólidos em crianças/adolescentes, formulações padronizadas, perfil ideal de dose/formulação e avaliação de riscos cognitivos e psiquiátricos.
  • Portanto, no estado atual, cannabis / canabinoides são uma opção terapêutica emergente e promissora, não substituta dos tratamentos convencionais, mas merecedora de ser considerada em cenários selecionados, com monitorização rigorosa.

Referências principais

  1. Müller-Vahl KR, Schneider U, Kolbe H, et al. Delta-9-tetrahydrocannabinol (THC) is effective in the treatment of tics in Tourette syndrome: a 6-week randomized trial. J Clin Psychiatry. 2003;64(4):459-65. PubMed
  2. Abi-Jaoude E, Bhikram T, Parveen F, et al. A Double-Blind, Randomized, Controlled Crossover Trial of Cannabis in Adults with Tourette Syndrome. Cannabis and Cannabinoid Research. 2022;8(5):545-558. Liebert Publishing
  3. Mosley P, McGregor I, et al. Tetrahydrocannabinol and Cannabidiol in Tourette Syndrome. NEJM Evidence. 2023. Evidence
  4. Israel open-label prospective study: Medical Cannabis for Gilles de la Tourette Syndrome. PubMed
  5. THX-110 study (THC + PEA) pilot trial. Psychiatry Online