A ideia de que a cannabis ou os canabinoides (THC, CBD e análogos sintéticos) poderiam modificar a evolução da esclerose múltipla (EM) — e não apenas aliviar sintomas — tem grande apelo entre pacientes e cuidadores. Mas o que a ciência realmente mostra hoje sobre propriedades neuroprotetoras e anti-inflamatórias desses compostos na EM?
Mecanismos plausíveis (o porquê faz sentido biologicamente)
O sistema endocanabinoide (receptores CB1 e CB2, enzimas de síntese/degradação e ligantes endógenos) está presente no sistema nervoso central e em células do sistema imune.
- CB1 é abundante em neurônios e tem papel na modulação da excitabilidade neuronal — sua ativação pode reduzir excitotoxicidade e apoptose neuronal.
- CB2 é mais associada a células imunes (microglia, linfócitos) e sua modulação exerce efeitos imunomodulatórios e anti-inflamatórios.
Esses mecanismos fornecem uma base biológica para ações que poderiam reduzir inflamação aguda, modular respostas imunes e conferir proteção axonal/neuronal. The Journal of Neuroscience+1
Evidência pré-clínica: sinais consistentes de neuroproteção e anti-inflamação
Em modelos animais da EM (principalmente EAE — experimental autoimmune encephalomyelitis), diversos trabalhos mostraram:
- redução de marcadores inflamatórios no SNC;
- diminuição de desmielinização e preservação axonal;
- menor excitotoxicidade e diminuição de células microgliais ativadas após tratamento com agonistas canabinoides ou com CBD;
alguns estudos clássicos demonstraram que camundongos deficientes em CB1 têm pior dano neurológico na EAE, enquanto agonistas canabinoides atenuam neurodegeneração e sinais clínicos. OUP Academic+1
Em suma: pré-clínica — consistente e biologicamente plausível. Esses dados justificam a translação para ensaios clínicos focados em neuroproteção. ScienceDirect
Evidência clínica: alívio de sintomas consolidado — modificador de doença? não comprovado
Na clínica humana, a maior parte das evidências robustas mostra benefício sintomático (espasticidade, dor central, disfunção urinária em alguns estudos), sobretudo com formulações farmacêuticas como o nabiximols (Sativex®, spray oromucosal, THC:CBD 1:1) — estudos controlados demonstraram redução de espasticidade em pacientes com EM refratária a terapêuticas convencionais. PubMed+1
Por outro lado, provas de efeito modificador de doença (isto é, redução da progressão de incapacidade, prevenção de atrofia axonal ou redução consistente da taxa de recaídas por mecanismo neuroprotetor) são insuficientes:
- Meta-análises e revisões sistemáticas concluem que, apesar de benefícios para sintomas, não há evidência clínica robusta que suporte mudança do curso natural da EM por canabinoides com os ensaios disponíveis até agora. Muitos estudos são pequenos, com duração limitada, heterogêneos em formulação e desfechos, e raramente projetados para avaliar progressão a longo prazo. PMC+1
Por que a translação pré-clínica → clínica falha até agora? principais limitações
- Desenho dos ensaios clínicos: a maioria foi feita para avaliar sintomas (espasticidade, dor) e não desfechos de neuroproteção (atrofia cerebral, perda axonal, EDSS ao longo de anos).
- Formulações, doses e via de administração heterogêneas: erva bruta, extratos padronizados e preparados farmacêuticos (nabiximols, preparados contendo CBD isolado, agonistas sintéticos) variam muito. Isso dificulta comparações e extrapolações.
- Tempo de seguimento curto: neuroproteção e mudança na progressão requerem seguimento longo (anos) e medidas sensíveis (RM com volumetria, OCT, biomarcadores neurodegenerativos como NfL).
- Populações heterogêneas: formas remitente-recorrente vs progressiva, tratamentos concomitantes com DMTs modernos (moduladores/imunossupressores) que por si só modificam curso da doença.
- Endpoints e poder estatístico: para detectar efeito sobre progressão são necessárias amostras maiores e protocolos de enriquecimento. PMC+1
O que os ensaios atuais e recentes acrescentam?
Há movimento ativo: revisões e meta-análises mais recentes reafirmam benefício sintomático (com nabiximols tendo o maior corpo de evidência), enquanto novos estudos observacionais e ensaios em fase inicial exploram formulações com diferentes THC/CBD e biomarcadores de neurodegeneração. Resultados preliminares e estudos de pequeno porte sugerem sinais promissores, mas não substituem ensaios randomizados, bem desenhados e com endpoints de progressão. PMC+1
Perspectivas e onde a pesquisa precisa avançar
Para que possamos responder “mito ou realidade?” com segurança, precisamos de:
- Ensaios clínicos randomizados, controlados, com longa duração (≥2–3 anos) com desfechos de progressão (EDSS/SDMT/atumia volumétrica por RM, NfL sérico/CSF).
- Protocolos padronizados de formulação e dose (definir se CBD puro, THC:CBD balanceado, ou agonistas seletivos de CB2 são mais promissores).
- Biomarcadores translacionais que permitam correlacionar sinais pré-clínicos (preservação axonal) com efeitos clínicos mensuráveis.
- Estudos combinatórios: avaliar canabinoides em combinação com terapias modificadoras de doença (DMTs) atuais para ver se há efeito aditivo/protetor. ScienceDirect+1
Conclusão — mito ou realidade?
- Mito se esperado for que hoje possamos afirmar que canabinoides provam modificar a história natural da EM em humanos. A evidência clínica atual não suporta essa conclusão. PMC
- Realidade (em potencial) se considerarmos a base biológica e evidência pré-clínica: há sinais consistentes de ações anti-inflamatórias e neuroprotetoras em modelos animais e mecanismos plausíveis em humanos — o que justifica investigação clínica rigorosa e bem projetada. OUP Academic+1
Mensagem prática para clínicos
- Para alívio de espasticidade e alguns sintomas, canabinoides (p.ex. nabiximols) são uma opção a considerar em pacientes selecionados, quando outras medidas falharam — com acompanhamento de efeitos adversos. PubMed+1
- Para o objetivo de modificar progressão da EM: hoje não há evidência suficiente para recomendação; pacientes devem ser informados sobre as limitações das provas e encorajados a participar de ensaios clínicos bem desenhados quando disponíveis.
Leituras selecionadas (para referências e aprofundamento)
- Pryce G, et al., Brain 2003 — Cannabinoids inhibit neurodegeneration in models of multiple sclerosis. OUP Academic
- Docagne F, et al., Exp Neurol 2007 — Excitotoxicity in a chronic model of multiple sclerosis; efeitos de HU210. PubMed
- Benito C, et al., J Neurosci 2007 — CB1/CB2 expression e implicações na EM. The Journal of Neuroscience
- Filippini G, et al., Cochrane Review 2019 — Cannabis and cannabinoids for people with multiple sclerosis: revisão sistemática. PMC
- Furgiuele A, et al., Frontiers/PMCID 2021 — Immunomodulatory potential of cannabidiol in multiple sclerosis. PMC

