O interesse em cannabis medicinal para o Transtorno do Espectro Autista (TEA) cresce em todo o mundo, à medida que estudos apontam potenciais benefícios no controle de sintomas como irritabilidade, agressividade, distúrbios do sono e ansiedade. No entanto, além da plausibilidade biológica e dos primeiros sinais clínicos de eficácia, um ponto crucial para médicos, pacientes e famílias é entender como manejar essa terapia na prática.
Neste artigo, vamos explorar:
- Formulações utilizadas (CBD puro vs extratos full-spectrum).
- Estratégias de dose e titulação.
- Perfil de segurança e efeitos adversos mais frequentes.
- Interações medicamentosas e monitoramento.
- Desafios regulatórios e éticos.
- Lacunas de pesquisa e recomendações práticas.
1. Formulações mais utilizadas
O mercado médico de cannabis oferece diferentes preparações, que variam em proporção de canabinoides, pureza e padronização.
1.1 CBD puro (isolado)
- Exemplo: Epidiolex®, aprovado para epilepsias refratárias.
- Vantagens: composição padronizada, estudos clínicos mais consistentes, previsibilidade farmacológica.
- Uso em TEA: vários ensaios randomizados em andamento utilizam CBD puro, pela facilidade de padronizar dose.
1.2 Extratos “full-spectrum” ricos em CBD
- Contêm CBD + outros fitocanabinoides + terpenos, em proporções variadas.
- Relação CBD:THC geralmente alta (ex.: 20:1, 30:1).
- Hipótese do efeito entourage: interação de múltiplos compostos poderia potencializar efeitos clínicos.
- Usados amplamente em estudos israelenses e programas clínicos no Brasil.
1.3 Formulações com maior teor de THC
- Muito menos utilizadas em TEA, especialmente pediátrico.
- Reservadas para casos específicos (ex.: quando CBD isolado não responde).
- Risco maior de efeitos adversos psiquiátricos e cognitivos.
2. Estratégias de dose e titulação
Ainda não existe consenso formal, mas padrões práticos têm sido descritos em literatura e protocolos clínicos.
- Princípio básico: start low, go slow.
- Doses iniciais de CBD variam de 1 a 2 mg/kg/dia, divididas em 2–3 tomadas.
- Titulação progressiva até 5–10 mg/kg/dia, dependendo da resposta clínica e tolerabilidade.
- Alguns estudos relatam uso acima de 15–20 mg/kg/dia em casos específicos, mas sempre com supervisão rigorosa.
- THC (quando presente) deve ser mantido em doses mínimas (<0,5–1 mg/dia em crianças).
Critérios de avaliação clínica: escalas de irritabilidade (ex.: ABC-I), qualidade do sono, redução de explosões de raiva, melhora funcional no cotidiano.
3. Perfil de segurança: o que sabemos até agora
3.1 Eventos adversos mais comuns
- Sonolência e fadiga.
- Diminuição de apetite e perda de peso em alguns casos.
- Diarreia e desconforto gastrointestinal.
- Irritabilidade transitória em início de tratamento.
A maioria é leve a moderada e tende a melhorar com ajuste de dose.
3.2 Preocupações de longo prazo
- Desenvolvimento cerebral: THC em doses elevadas pode interferir em processos cognitivos e emocionais, especialmente em cérebros em desenvolvimento.
- Exposição crônica em crianças/adolescentes: faltam dados longitudinais para confirmar segurança neurodesenvolvimental.
- Impacto em fertilidade e gravidez: contraindicação absoluta durante gestação e lactação.
3.3 Dados de tolerabilidade
Estudos observacionais e ensaios piloto indicam que formulações CBD-rich são bem toleradas na maioria dos pacientes pediátricos, com taxa de abandono relativamente baixa.
4. Interações medicamentosas
Um ponto crítico no manejo é a possibilidade de interações farmacológicas, já que muitas crianças com TEA utilizam anticonvulsivantes, antipsicóticos ou ansiolíticos.
- CBD inibe enzimas do citocromo P450 (CYP3A4, CYP2C19).
- Pode elevar níveis séricos de:
- Clobazam → risco de sedação.
- Ácido valpróico → risco de hepatotoxicidade.
- Outros antiepilépticos e antidepressivos.
Por isso, recomenda-se:
- Exames laboratoriais regulares (função hepática, níveis séricos de medicamentos).
- Revisão detalhada da farmacoterapia concomitante antes de iniciar cannabis.
5. Desafios regulatórios e éticos
- Regulação heterogênea: no Brasil, a ANVISA permite importação de produtos à base de cannabis com prescrição médica, mas há falta de padronização de qualidade entre fornecedores.
- Acesso desigual: custo elevado e barreiras burocráticas limitam acesso para muitas famílias.
- Uso em crianças: levanta dilemas éticos, já que evidências robustas ainda estão em construção. A decisão deve sempre ser compartilhada com os responsáveis, após discussão clara sobre riscos e benefícios.
6. Lacunas de pesquisa e prioridades futuras
Apesar do avanço rápido, há questões em aberto:
- Doses ideais e regimes padronizados: ainda não estabelecidos.
- Comparação entre CBD isolado e extratos full-spectrum: estudos head-to-head são necessários para confirmar ou refutar o “efeito entourage”.
- Segurança a longo prazo: faltam dados sobre impacto no desenvolvimento cognitivo, acadêmico e emocional após anos de uso contínuo.
- Biomarcadores preditivos: identificar quais subgrupos de pacientes respondem melhor à terapia.
7. Conclusão prática
O uso de cannabis medicinal no TEA deve ser conduzido com prudência e monitoramento especializado.
- Formulações CBD-rich com mínimo de THC são preferíveis em idade pediátrica.
- A titulação deve ser lenta, com acompanhamento clínico e laboratorial.
- O perfil de segurança atual é aceitável, mas faltam dados de longo prazo.
- Interações medicamentosas e riscos específicos exigem atenção rigorosa.
Em resumo, a cannabis não deve ser vista como substituto das terapias padrão (psicoeducação, terapias comportamentais, manejo farmacológico de comorbidades), mas sim como opção adjuvante em casos selecionados, quando sintomas refratários comprometem a qualidade de vida.
Leituras recomendadas
- Aran A. et al. Cannabinoid treatment for autism: a proof-of-concept interventional study. Mol Autism, 2021.
- Bar-Lev Schleider L. et al. Real life Experience of Medical Cannabis Treatment in Autism. Sci Rep, 2019.
- Parrella NF. et al. Systematic review of cannabidiol trials in neurodevelopmental disorders. 2023.
- Devinsky O. et al. Trial of cannabidiol for drug-resistant epilepsy in the Dravet syndrome. NEJM, 2017 (dados de segurança extrapolados para TEA).
- Frontiers & ScienceDirect: revisões atualizadas (2023–2025) sobre segurança e manejo clínico de CBD em populações pediátricas.

