Canabinoides no tratamento da epilepsia — revisão extensa, baseada em evidências atualizadas

TL;DR:evidência robusta e controlada de que o canabidiol (CBD) farmacêutico reduz a frequência de crises em síndromes epilépticas refratárias específicas (Dravet, Lennox-Gastaut e crises associadas à tuberose-sclerose complexa). O medicamento purificado (Epidiolex/Epidyolex) recebeu autorização regulatória (FDA/EMA) nessas indicações. Mecanismos antiepilépticos do CBD são multimodais (GPR55, TRPV1, modulação do cálcio intracelular e da adenosina, entre outros). Efeitos adversos — sobretudo sonolência, diarreia, redução do apetite e elevação das transaminases hepáticas (interação importante com valproato) — exigem monitorização. Fora do CBD farmacêutico, as provas para “cannabis inteira” ou preparações não padronizadas são inconsistentes e insuficientes para uso clínico rotineiro. PubMed+4New England Journal of Medicine+4New England Journal of Medicine+4

1. Por que este tema importa (cenário clínico)

A epilepsia afeta dezenas de milhões de pessoas no mundo; cerca de 20–30% terão epilepsia farmacorresistente (crises persistentes apesar de terapêutica com fármacos antiepilépticos adequados). Para síndromes graves de início pediátrico (Dravet, Lennox-Gastaut) a carga é alta — crises fisiológicas recorrentes, atraso do desenvolvimento e mortalidade aumentada. Novas opções seguras e eficazes são, portanto, prioritárias. Nos últimos 8 anos, a indústria e a pesquisa clínica forneceram múltiplos ensaios randomizados que mudaram a prática ao introduzir o CBD farmacêutico como opção adjuvante em síndromes selecionadas. New England Journal of Medicine+1


2. Que substâncias estamos a discutir?

  • Canabidiol (CBD) — o componente não-psicoativo mais estudado; formulado como solução oral purificada (com nomes comerciais Epidiolex®/Epidyolex®). É o fármaco com evidência de nível I em epilepsias específicas. Dados de Acesso da FDA+1
  • Tetrahidrocanabinol (THC) — psicoativo; evidência antiepiléptica é limitada e uso clínico em epilepsia é desaconselhado devido a efeitos psicoativos e risco de provovar crises em alguns usuários. Frontiers
  • Outros canabinoides (CBDV, CBG, etc.) — em investigação; estudos fase II mostraram sinais promissores mas resultados são heterogêneos e não são ainda base para recomendações. PubMed+1
  • Preparações “de origem vegetal” (extratos não padronizados, óleos caseiros) — relatos anedóticos existem; porém evidência controlada é fraca, e variabilidade de composição/contaminação limita sua recomendação. Organizações científicas pedem estudos rigorosos. Default+1

3. Evidência clínica de maior peso (ensaios randomizados e aprovações regulatórias)

3.1 Dravet syndrome (DS)

Em 2017 Devinsky et al. publicaram um RCT multicêntrico, duplo-cego, que mostrou redução significativa nas crises convulsivas em pacientes com Dravet tratados com CBD comparado a placebo. Esse e outros trabalhos formaram a base para aprovação regulatória. New England Journal of Medicine+1

3.2 Lennox-Gastaut syndrome (LGS)

Em 2018 outro RCT de alta qualidade (Devinsky et al.) demonstrou redução das “drop-seizures” (quedas atônicas) com CBD adicionado ao tratamento habitual. Esses dados também foram confirmados em estudos de fase 3 e em extensões abertas. New England Journal of Medicine+1

3.3 Tuberous Sclerosis Complex (TSC)

Estudos fase 3 (p.ex. GWPCARE6) mostraram eficácia do CBD também em crises associadas à TSC; os dados levaram à extensão das indicações em alguns países/regiões. Ensaios demonstraram redução estatisticamente significativa de frequência de crises em comparação com placebo. JAMA Network+1

3.4 Autorizações regulatórias

  • FDA (EUA): EPIDIOLEX® aprovado para Lennox-Gastaut, Dravet e TSC (em diferentes atualizações) — com instruções de dosagem, advertências hepáticas e interações. Dados de Acesso da FDA+1
  • EMA (UE): Epidyolex® aprovado para indicações semelhantes desde 2019 (atualizado posteriormente para TSC). European Medicines Agency (EMA)

Interpretação: estes são os pilares de evidência clínica: RCTs fase 3, seguidos por extensões abertas e adoção regulatória. Para essas síndromes, CBD purificado é uma opção terapêutica com comprovação de eficácia adjuvante. New England Journal of Medicine+2New England Journal of Medicine+2


4. Mecanismos de ação (o que sabemos da biologia)

O mecanismo exato pelo qual o CBD reduz crises não está totalmente esclarecido — é multimodal:

  • Antagonismo funcional de GPR55: GPR55 parece aumentar a excitabilidade neuronal; o CBD age como antagonista e diminui a liberação glutamatérgica/atividade excitatória. PubMed+1
  • Modulação de canais TRPV1 (dessensibilização) e regulação do cálcio intracelular — reduzindo a excitabilidade neuronal. PubMed+1
  • Interferência no transporte de adenosina (ENT-1) — aumentando sinalização adenosinérgica antiexcitatória. PubMed
  • Ações sobre canais iónicos e outras GPCRs (GPR18, possivelmente efeitos em canais de sódio e potássio) e influência anti-inflamatória indireta — todas contribuindo para reduzir o limiar convulsivo. A evidência mecanicista vem de modelos celulares e animais e estudos farmacológicos recentes. MDPI+1

Resumo: CBD é um agente antiepiléptico com múltiplos alvos, o que provavelmente explica eficácia em síndromes com diversa patofisiologia (p.ex. Dravet — mutação SCN1A — e LGS, mais heterogênea). PubMed+1


5. Eficácia clínica: o que os RCTs mostram em termos práticos?

  • Magnitude do benefício: em Dravet e LGS os ensaios mostraram redução média de crises no grupo CBD versus placebo — tipicamente diferença clínica estatisticamente significativa (ex.: redução relativa de cerca de 30–40% em alguns desfechos por protocolo). Muitos pacientes obtêm redução ≥50% na frequência de crises. New England Journal of Medicine+1
  • Tempo de início de efeito: alguns estudos apontam efeito detectável nas primeiras semanas após atingir doses terapêuticas, com manutenção em extensões abertas. Wiley Online Library+1
  • População: a evidência é mais forte em Dravet, LGS e TSC. Para epilepsias focais ou outras etiologias, os resultados são menos consistentes ou insuficientes para recomendação universal. Trials em epilepsias focais mostraram resultados mistos (ex.: CBDV). PubMed+1

6. Segurança e interações — pontos práticos e obrigatórios

6.1 Perfil de eventos adversos

Os eventos adversos mais frequentes notificados nos RCTs e extensões foram: sonolência/sedação, diarreia, redução do apetite, febre, vômitos e aumento das transaminases (ALT/AST). A maioria é dose-relacionada e em geral manejável com ajuste da dose. PMC+1

6.2 Hepatotoxicidade — monitorização obrigatória

Houve aumento de ALT/AST em alguns pacientes, particularmente quando CBD foi usado concomitantemente com valproato. Por isso as orientações regulatórias pedem avaliar enzimas hepáticas antes de iniciar, e monitorizar nas semanas iniciais e periodicamente. Elevações significativas podem exigir redução ou cessação do CBD. NCBI+1

6.3 Interação clínica mais relevante: clobazam

CBD inibe isoenzimas do CYP e altera metabólitos de outros antiepilépticos. Um exemplo crítico é o aumento de N-desmethylclobazam quando CBD é coadministrado com clobazam, o que amplifica sonolência/euforia/sedação e pode requerer ajuste de dose de clobazam. Clínicos devem monitorar efeitos sedativos e considerar redução do benzodiazepínico se necessário. PubMed+1

6.4 Outras interações farmacocinéticas

CBD interage com CYP3A4 e CYP2C19 (inibidor/indutor complexos), podendo alterar níveis de outros ASMs (carbamazepina, topiramato, fenitoína, etc.). Revisão de interações e ajuste de fármacos são parte essencial do manejo. ScienceDirect+1

6.5 Riscos em grupos específicos

  • Crianças: muitos estudos foram pediátricos — porém monitorização pediátrica rigorosa é necessária. Long-term follow-up sugere manutenção do efeito e perfil aceitável, mas vigilância para desenvolvimento e comportamento é indicada. PubMed+1
  • Gestação e lactação: dados insuficientes; agências e sociedades recomendam evitar exposição durante gravidez/lactação sempre que possível. Os dados sobre efeitos fetais humanos são escassos; recomenda-se discussão risco/benefício individualizada. U.S. Food and Drug Administration+1

7. Como prescrever (prática baseada em rótulo e consenso)

Atenção: abaixo há um resumo prático — siga sempre o rótulo local, práticas institucionais e procedimentos de farmacovigilância.

7.1 Indicações comprovadas (onde considerar)

  • Adjuvante para Lennox-Gastaut e Dravet (≥1–2 anos de idade conforme rótulo regional) e crises associadas a TSC (rótulo expandido). Dados de Acesso da FDA+1

7.2 Dose inicial e titulação (resumo do rótulo)

  • Início: 2,5 mg/kg por via oral duas vezes ao dia (5 mg/kg/dia) durante 1 semana.
  • Manutenção comum: 5 mg/kg 2×/dia (10 mg/kg/dia). Pode titrar em incrementos semanais de 2,5 mg/kg 2×/dia até 10 mg/kg 2×/dia (20 mg/kg/dia) para LGS/DS; para TSC o rótulo prevê possibilidade de manutenção até 12,5 mg/kg 2×/dia (25 mg/kg/dia) conforme tolerância e benefício. Ajuste para função hepática. Consulte o rótulo EMA/FDA para instruções completas. Dados de Acesso da FDA+1

7.3 Exames e monitorização antes e durante

  • Baseline: ALT, AST, bilirrubina total (e painel hepático completo), revisão de medicações atuais (foco em valproato, clobazam).
  • Seguimento: enzimas hepáticas (p.ex. 2, 4 e 12 semanas após início ou aumento) e sempre que sintomas sugestivos; monitorização de sedação, função clínica e efeitos colaterais gastrointestinais. Monitorizar níveis séricos de ASMs quando houver suspeita de interação clínica. NCBI+1

7.4 Ajustes importantes

  • Se ALT/AST >3×LSN com sintomas ou >5×LSN assintomático: considerar redução ou suspensão. Consulte o rótulo.
  • Com clobazam: avaliar sedação; considerar redução da dose de clobazam se necessário e monitorizar N-desmethylclobazam clinicamente. PubMed

8. Evidência além do CBD purificado: THC, CBDV e “cannabis inteira”

  • THC e preparações ricas em THC: não há RCTs de alto nível que respaldem uso rotineiro em epilepsia; THC pode ser pró-convulsivante em alguns contextos e tem efeitos psicoativos significativos. Não é indicado como terapia padrão. Frontiers
  • Cannabidivarin (CBDV): fase II em focal seizures mostrou resultados mistas/negativos (redução em ambos os braços possivelmente por efeito placebo ou variabilidade), portanto ainda não há aprovação ou recomendação clínica. Estudos adicionais necessários. PubMed+1
  • Extratos “whole-plant”: relatos e séries (muitos não controlados) sugerem benefícios em alguns pacientes; porém evidência controlada é insuficiente e variabilidade de conteúdo (THC, pesticidas, metais pesados) torna o uso clínico inseguro sem padronização. Sociedades científicas pedem ensaios rigorosos. PMC+1

9. Evidência a longo prazo e efetividade na “vida real”

Estudos de extensão aberta e programas de acesso expandido mostram manutenção do benefício por meses/anos em muitos pacientes e perfil de segurança estável, embora dados de longo prazo (decadas) ainda faltem. Meta-análises recentes avaliam eficácia global e eventos adversos, confirmando benefício moderado mas real, e aumento de AEs relativos ao placebo. A disponibilidade e custo/acesso variam entre países. Wiley Online Library+3PubMed+3PubMed+3


10. Lacunas de conhecimento e prioridades de pesquisa

  1. Efeito em epilepsias focais e em adultos não-síndrome-específicas: resultados heterogêneos e necessidade de RCTs bem-desenhados. PubMed
  2. Mecanismo final: descrever relação farmacodinâmica/biomarcadores que prevejam resposta. PubMed
  3. Impacto cognitivo e desenvolvimento a longo prazo (especialmente em crianças com início precoce). PubMed
  4. Comparações head-to-head com outras terapias (p.ex. fenfluramina, canabinoides vs fenfluramina em Dravet). Taylor & Francis Online
  5. Formas farmacêuticas e dose ótimas para subgrupos (interação genética/biomarcadores). PMC

11. Mensagem prática para clínicos

  • Para pacientes com Dravet, LGS ou crises associadas à TSC que permanecem com crises apesar de terapêutica adequada, considere adicionar CBD purificado (Epidiolex/Epidyolex) seguindo indicação regulatória, com titulação lenta, monitorização de enzimas hepáticas e revisão atenta de interações (clobazam, valproato). New England Journal of Medicine+2New England Journal of Medicine+2
  • Evite recomendar produtos de cannabis não padronizados como substitutos das formulações farmacêuticas aprovadas; informe famílias/pacientes sobre variabilidade, risco de contaminação e incerteza de dose. Default+1
  • Documente resposta com diários de crise, avalie qualidade de vida e efeitos adversos, e participe de registro local/nacional quando disponível (ajuda a geração de dados de mundo real). PMC

12. Referências selecionadas (leituras-chave — títulos e fontes)

(links clicáveis estão nas citações inline)

  • Devinsky O., et al. Trial of Cannabidiol for Drug-Resistant Seizures in the Dravet Syndrome. N Engl J Med. 2017. New England Journal of Medicine
  • Devinsky O., et al. Effect of Cannabidiol on Drop Seizures in the Lennox-Gastaut Syndrome. N Engl J Med. 2018. New England Journal of Medicine
  • Thiele EA., et al. Add-on Cannabidiol Treatment for Drug-Resistant Seizures Associated with Tuberous Sclerosis Complex. JAMA Neurol. 2021. PubMed
  • FDA Prescribing Information — EPIDIOLEX® (cannabidiol) (label; dosing, segurança, interações). Dados de Acesso da FDA+1
  • EMA — Epidyolex EPAR (product information, 2019, atualizações). European Medicines Agency (EMA)
  • Geffrey AL., et al. Drug–drug interaction between clobazam and cannabidiol. (interação que aumenta N-desmethylclobazam). PubMed
  • LiverTox / NIH — Cannabidiol (hepatotoxicidade e monitorização). NCBI
  • Fazlollahi A., et al. Adverse Events of Cannabidiol Use in Patients With Epilepsy (systematic review/meta-analysis, 2023). PMC
  • Brodie MJ., et al. Phase 2 RCT of cannabidivarin (CBDV) in focal seizures (resultados mistos). PubMed
  • American Epilepsy Society (AES) — posição sobre cannabis e epilepsia (recomenda estudos controlados; evidencia CBD em síndromes específicas). Default

13. Resumo final (um parágrafo)

O CBD farmacêutico é hoje a intervenção com maior evidência entre os derivados da cannabis para epilepsia — com RCTs de alta qualidade e autorizações regulatórias para Dravet, Lennox-Gastaut e TSC. Seus efeitos são reais e clinicamente relevantes em muitas crianças e adultos com epilépsia refratária, mas exigem uso informado: monitorização hepática, atenção a interações (clobazam, valproato), titulação adequada e cuidado com produtos não padronizados. Pesquisas continuam em outras moléculas (CBDV) e em expandir indicação para epilepsias focais; entretanto, até que novos dados surjam, recomenda-se seguir as indicações e o rótulo das agências regulatórias e as orientações das sociedades neurológicas. Dados de Acesso da FDA+3New England Journal of Medicine+3New England Journal of Medicine+3