O interesse crescente no uso da cannabis medicinal para o Transtorno do Espectro Autista (TEA) não surgiu por acaso. Um dos pilares que sustentam essa linha de pesquisa é a descoberta de alterações no sistema endocanabinoide (ECS) em pessoas com TEA. Esse sistema biológico, essencial para a homeostase do cérebro e do corpo, regula desde sono, ansiedade e dor até plasticidade sináptica e inflamação.
Neste artigo, vamos explorar:
- O que é o sistema endocanabinoide e como ele funciona.
- Evidências científicas de sua alteração no autismo.
- A plausibilidade biológica que fundamenta o uso de canabinoides.
- Perspectivas de pesquisa e potenciais biomarcadores.
1. O que é o Sistema Endocanabinoide (ECS)?
O ECS é uma rede de sinalização bioquímica composta por três elementos principais:
- Endocanabinoides: moléculas produzidas pelo próprio organismo, como anandamida (AEA) e 2-araquidonoilglicerol (2-AG).
- Receptores canabinoides: principalmente CB1 (abundante no cérebro, modulando neurotransmissão) e CB2 (mais ligado ao sistema imunológico e neuroinflamação).
- Enzimas reguladoras: responsáveis pela síntese e degradação desses compostos (ex.: FAAH, que degrada anandamida, e MAGL, que degrada 2-AG).
Esse sistema age como um “freio modulador” da atividade neuronal e inflamatória, equilibrando processos de excitação e inibição.
2. Alterações do ECS no Autismo: o que mostram os estudos
Diversos trabalhos científicos recentes apontam que o ECS não funciona normalmente em indivíduos com TEA.
2.1 Redução de endocanabinoides
- Estudos em humanos demonstraram que crianças e adultos com TEA apresentam níveis reduzidos de anandamida (AEA) no sangue e líquido cerebroespinhal.
- Uma meta-análise publicada em 2023 (Jia et al., PubMed) consolidou esse achado, sugerindo um “estado de hipotonia endocanabinoide”.
2.2 Receptores canabinoides alterados
- Modelos animais de TEA (ex.: induzidos por valproato) mostram alterações na densidade de receptores CB1 e CB2 em regiões-chave como hipocampo e córtex pré-frontal.
- Isso afeta diretamente plasticidade sináptica e regulação de neurotransmissores.
2.3 Enzimas reguladoras
- Estudos recentes identificaram maior atividade da FAAH, enzima que degrada a anandamida, contribuindo para os níveis reduzidos de endocanabinoides.
- Alterações genéticas no gene CNR1 (CB1) e em enzimas do ECS já foram descritas em subgrupos de pessoas com TEA.
3. Relação com neurotransmissores e redes cerebrais
O ECS interage intimamente com sistemas já implicados no autismo:
- Equilíbrio GABA/Glutamato: o TEA é associado a um “desbalanço excitatório-inibitório”. O ECS regula diretamente esse eixo — e o CBD pode restaurar parcialmente esse equilíbrio.
- Serotonina (5-HT): anandamida e CBD modulam receptores 5-HT1A, o que se conecta a sintomas como ansiedade e disfunção social.
- Neuroinflamação microglial: CB2 regula a ativação de células imunes no cérebro; estudos mostram microglia hiperativa em TEA, que poderia ser modulada por canabinoides.
- Plasticidade sináptica: a sinalização endocanabinoide é crucial para processos de aprendizado, memória e sociabilidade.
4. O conceito de “hipotonia endocanabinoide” no TEA
A hipótese proposta por vários pesquisadores é que o TEA representa, ao menos em parte, uma condição de déficit funcional do ECS.
- Essa “hipotonia” pode explicar sintomas como irritabilidade, ansiedade e distúrbios do sono.
- Intervenções que aumentam a sinalização endocanabinoide — como CBD (que inibe a degradação da anandamida) — teriam potencial terapêutico.
Esse conceito já foi aplicado também em condições como enxaqueca, fibromialgia e síndrome do intestino irritável, reforçando a ideia de que um ECS deficitário pode gerar quadros clínicos complexos.
5. Biomarcadores e perspectivas futuras
Um dos maiores desafios na medicina do TEA é a falta de biomarcadores objetivos de resposta terapêutica. O ECS surge como uma das áreas mais promissoras:
- Níveis plasmáticos de anandamida já foram correlacionados com gravidade de sintomas sociais em crianças com TEA.
- Técnicas de neuroimagem (PET e fMRI) começam a avaliar ligação de receptores CB1 no cérebro de indivíduos com TEA.
- Estudos genômicos sugerem que variantes em genes do ECS podem predizer resposta a terapias baseadas em canabinoides.
Se confirmados, esses achados podem guiar uma medicina personalizada, identificando quem mais se beneficiaria do uso da cannabis medicinal.
6. Conclusão
O corpo de evidências científicas aponta que o sistema endocanabinoide está alterado em pessoas com TEA, reforçando a plausibilidade biológica para o uso de cannabis medicinal — especialmente formulações ricas em CBD.
Essas alterações incluem níveis reduzidos de anandamida, receptores canabinoides disfuncionais e desregulação de enzimas do ECS, com impacto direto sobre neurotransmissores, neuroinflamação e plasticidade cerebral.
Embora ainda faltem ensaios clínicos robustos que comprovem eficácia definitiva, a ciência já estabeleceu um alicerce biológico sólido para justificar o interesse no tema e orientar pesquisas futuras.
Leituras recomendadas
- Jia X. et al. Meta-analysis of endocannabinoid system alterations in autism spectrum disorder (2023/2024). PubMed.
- Zamberletti E. et al. The endocannabinoid system in autism spectrum disorders: from animal models to clinical insights (2022). Frontiers.
- Pretzsch CM. et al. CB1 receptor availability and social functioning in adults with autism: a PET study (2021). Transl Psychiatry.
- Karhson DS. et al. Endocannabinoid signaling in autism: plasma anandamide levels and correlation with social impairment (2018). Mol Autism.

