Resumo curto (TL;DR): evidências pré-clínicas e relatos de pacientes indicam que canabinoides (especialmente CBD e combinações THC/CBD) têm múltiplos mecanismos que podem reduzir inflamação, angiogênese e dor associadas à endometriose. Estudos clínicos controlados ainda são limitados, mas vários ensaios piloto e randomizados estão em andamento (ENDOCAN-1, ENDO-CAN1, NCT06477406, entre outros). A indicação clínica atual é cautelosa e individualizada — considerar como terapia adjuvante em pacientes com dor persistente, sempre avaliando riscos (gestação, função reprodutiva, efeitos psicoativos) e interações medicamentosas. MDPI+2PMC+2
1) Contexto: por que a endometriose é um alvo plausível para canabinoides
Endometriose é uma doença inflamatória crônica em que tecido similar ao endométrio cresce fora do útero, gerando dor pélvica crônica, dismenorreia, dispareunia e, por vezes, infertilidade. Afeta uma parcela relevante da população (estimativas frequentemente citam ~10% das mulheres em idade reprodutiva; revisões recentes discutem prevalência e impacto clínico). MDPI
Do ponto de vista fisiopatológico, a endometriose envolve inflamação local, neoinnervação, angiogênese, alterações imunes e proliferação de lesões — todos processos que podem ser modulados pelo sistema endocanabinoide (ECS). Por isso já existe uma forte base biológica para investigar canabinoides nessa doença. PMC+1
2) O que diz a biologia: mecanismos pelos quais canabinoides podem atuar na endometriose
A literatura experimental descreve múltiplos alvos e mecanismos relevantes:
- Dysregulação do ECS nas lesões: expressão alterada de receptores canabinoides (CNR1/CB₁ e CNR2/CB₂), variações nos níveis de endocanabinoides (anandamida, 2-AG) no líquido peritoneal e tecido das lesões — sugerindo que o ECS está implicado no microambiente das lesões. PMC+1
- Anti-inflamação e imunomodulação: ativação de CB₂ modula macrófagos e células imunes, reduz citocinas pró-inflamatórias e pode baixar o recrutamento inflamatório ao redor das lesões. BioMed Central
- Anti-angiogênese e antiproliferação: estudos apontam que CBD e outros compostos reduzem marcadores de angiogênese (p.ex. VEGF) e sinais de proliferação celular em modelos experimentais. PMC+1
- Redução de dor via vias neuronais: canabinoides modulam receptores nociceptivos e vias de sensibilização (TRPV1, CB₁ no SNC e terminação nervosa), com efeito sobre a dor visceral e neuropática associada a lesões e neoinervação. eLife+1
Em suma: há plausibilidade mecanística para que canabinoides atuem em vários alvos relevantes da endometriose — inflamação local, desenvolvimento de vasos, crescimento da lesão e modulação da dor. BioMed Central+1
3) Evidência pré-clínica (animais e modelos in vitro)
Vários estudos experimentais mostram efeitos promissores:
- Modelos animais (mice/ratos): administração de THC ou CBD reduziu dor relacionada a modelos de endometriose, às vezes diminuindo o diâmetro/volume das lesões e modulando marcadores inflamatórios. Por exemplo, estudos em roedores observaram redução de dor pélvica e alterações comportamentais após tratamento com canabinoides. eLife+1
- Estudos in vitro: CBD mostrou efeitos anti-angiogênicos, reduzindo expressão de MMP-9, iNOS e TGF-β em células de modelos endometrióticos, e induzindo sinais anti-proliferativos. PMC+1
Limitação óbvia: efeitos em animais nem sempre traduzem 1:1 para humanos (dose, via, farmacocinética), mas esses achados apoiam a passagem para estudos clínicos. eLife+1
4) Evidência clínica e relatos de pacientes (o que existe até agora)
Estudos observacionais e pesquisas de usuário
- Levants autodeclarados: pesquisas online e coortes mostram que muitas mulheres com endometriose usam cannabis (inalada, óleos, tópicos) para controlar dor pélvica, dismenorreia, sintomas gastrointestinais e melhora do sono; a maioria relata benefícios sintomáticos. (Ex.: Sinclair et al., 2021; revisões de autodeclaração). PMC+1
- Pesquisas recentes e amostras maiores: estudos de 2024–2025 mostram padrão similar — uso frequente por autocuidado e relatos de alívio, mas muitos usuários sem supervisão médica. Essas séries auxiliam a formular hipóteses e a planejar RCTs. MDPI+1
Ensaios clínicos controlados (situação atual)
- Ensaios randomizados em andamento/pilotos: há vários estudos controlados em fase piloto ou fase II avaliando preparações ricas em CBD ou combinações CBD/THC (por exemplo ENDOCAN-1 / MRX1, ENDO-CAN1 — CBD; NCT06477406 — produto sublingual rico em CBD). Esses ensaios estão desenhados para testar eficácia na dor pélvica associada à endometriose e para mapear segurança e tolerabilidade. Resultados de grande ensaio clínico controlado e publicado ainda são escassos até o momento. anandapharma.co.uk+2Centre for Reproductive Health+2
Interpretação prática: atualmente há evidência clínica preliminar (observacional + pequenos RCTs e ensaios piloto em progresso) sugerindo benefício sintomático, mas faltam ensaios randomizados multicêntricos e publicados em grande escala que permitam recomendações firmes. PMC+1
5) Quais formulações / vias foram testadas ou são plausíveis?
- CBD oral / sublingual (alto-CBD): foco de vários ensaios clínicos; boa tolerabilidade e efeitos anti-inflamatórios/antiangiogênicos sugeridos nos estudos pré-clínicos. ClinicalTrials.gov+1
- Preparações combinadas THC:CBD (extratos / sprays oromucosos): potencial analgésico via CB₁/CB₂ e efeitos adjuvantes no sono; risco de efeitos psicoativos depende da dose de THC. eLife
- Inalação (vaporização) e tópicos/locais: relatos de uso self-managed; pouca evidência controlada especificamente em endometriose.
- Produtos experimentais / formulações vaginais ou intra-cavitárias: ainda em pesquisa; abordagem local teoricamente atrativa para reduzir efeitos sistêmicos, mas mais estudos são necessários. Reuters
6) Segurança, contraindicações e recomendações práticas
- Gestação / fertilidade: diretrizes obstétricas (ACOG e similares) recomendam evitar o uso de cannabis na gestação e lactação devido a potenciais riscos ao desenvolvimento fetal; mulheres em idade reprodutiva que desejam engravidar devem discutir riscos. ACOG+1
- Efeitos adversos: boca seca, tontura, sonolência, alterações cognitivas (mais com THC), e risco de desenvolvimento de uso problemático em subgrupos. PMC
- Interações medicamentosas: canabinoides são metabolizados por CYP450 (ex.: CYP3A4, CYP2C9) — atenção a anticoncepcionais hormonais, analgésicos, antidepressivos e anticoagulantes. Monitorar polimedicação. BioMed Central
- Uso sem supervisão: muitos pacientes usam sem orientação; sociedades profissionais e consensos (ex.: ACOG* sobre dor ginecológica) recomendam que médicos conversem abertamente sobre uso, monitorizem e orientem sobre riscos. ACOG+1
*Nota: ACOG publicou consensos recentes sobre uso de cannabis em condições ginecológicas e recomenda diálogo clínico informado. ACOG
7) O que as diretrizes profissionais e autoridades dizem?
- Posicionamento prudente: a evidência não é ainda suficientemente robusta para recomendações universais; organizações incentivam diálogo médico-paciente, pesquisa e cautela em gestantes. ACOG+1
- Regulação variável: alguns estados/países já incluíram endometriose entre as indicações aprovadas para acesso a cannabis medicinal (ex.: Illinois). Isso reflete reconhecimento social/regulatório e pressão por opções terapêuticas, mas não equivale a prova definitiva de eficácia. Jacksonville Journal-Courier
8) Resumo das lacunas de conhecimento e prioridades de pesquisa
Principais necessidades antes de recomendações firmes:
- RCTs multicêntricos, padronizados e com desfechos clínicos (dor, função, fertilidade). anandapharma.co.uk
- Comparações entre formulações (CBD vs THC vs combinação), vias de administração e doses. ClinicalTrials.gov
- Estudos de longo prazo sobre segurança reprodutiva e efeitos em fertilidade/gestação. BioInfo Brasil
- Biomarcadores/estratificação de pacientes (quem responde melhor?). BioMed Central
9) Conclusão prática para clínicos (o que fazer hoje)
- Converse abertamente: pergunte ao paciente sobre uso atual de cannabis e documente. PMC
- Considere canabinoides como adjuvante em pacientes com dor pélvica endometriótica refratária a terapias padrão, após discutir evidência limitada, riscos (especialmente se há desejo de gravidez) e alternativas. anandapharma.co.uk+1
- Prefira produtos padronizados em contexto de pesquisa ou vigilância clínica (ensaios ou programas de prescrição), inicie com baixa dose e ajuste gradualmente; monitore dor, sono, função e efeitos adversos. ClinicalTrials.gov
- Evite uso durante gravidez e lactação e oriente sobre interação medicamentosa. ACOG
Referências selecionadas (leitura e citação direta)
- Farooqi T, Bhuyan DJ, Low M, Sinclair J, Leonardi M, Armour M. Cannabis and Endometriosis: The Roles of the Gut Microbiota and the Endocannabinoid System. J Clin Med. 2023. MDPI
- Sinclair J, et al. Effects of cannabis ingestion on endometriosis-associated symptoms. (2021; artigo em acesso aberto). PMC
- Aliabad RA, et al. Cannabidiol as a possible treatment for endometriosis. (2024 review / PMC). PMC
- Escudero-Lara A, et al. Disease-modifying effects of natural Δ9-THC in a mouse model of endometriosis. eLife / 2020. eLife
- ENDOCAN-1 / MRX1 pilot trial (anandapharma portfolio; pilot RCT planning 100 women, MRX1 CBD vs placebo). anandapharma.co.uk
- ENDO-CAN1 clinical trial (Edinburgh / ENDO-CAN1 — estudo CBD para dor de endometriose). Centre for Reproductive Health
- ClinicalTrials.gov NCT06477406 — estudo de produto sublingual alto-CBD vs placebo em endometriose. ClinicalTrials.gov
- Bouaziz J, et al. The Clinical Significance of Endocannabinoids in Endometriosis. (revisão, 2017). PMC
- Whitaker LHR. Endometriosis: cannabidiol therapy for symptom relief. Trends Pharmacol Sci. 2024 (review). Cell
- American College of Obstetricians and Gynecologists (ACOG) — posição e consensos sobre uso de cannabis em condições ginecológicas e orientação sobre gestação (consenso/guia). ACOG+1

