Dor crônica — o que é, como a cannabis pode ajudar e o que a ciência diz

Resumo: este artigo explica de forma clara o que é dor crônica, resume a evidência científica sobre o uso de cannabis e derivados para dor crônica, descreve os mecanismos biológicos propostos e discute benefícios, riscos e orientações práticas para clínicos e pacientes.


O que é dor crônica (breve)

Dor crônica é tipicamente definida como dor persistente por >3 meses, frequentemente desproporcional à lesão tissular e com componentes nociceptivos, neuropáticos e psicossociais. Afeta milhões de pessoas, reduz qualidade de vida, sono e funcionalidade, e muitas vezes responde mal a analgésicos convencionais. (contexto clínico geral — revisão de dor crônica; ver revisões citadas adiante).


Evidência clínica: os estudos e o estado atual do conhecimento

Panorama geral: revisões de alto nível concluem que há evidência limitada a moderada de que produtos à base de cannabis e canabinoides podem reduzir alguns tipos de dor crônica em adultos, mas a magnitude do efeito, consistência entre estudos e a qualidade metodológica variam — isto resulta em recomendações cautelosas. BioInfo Brasil+2acpjournals.org+2

Pontos-chave sustentados pela literatura:

  • Relatório da National Academies (2017): concluiu que existem evidências de benefício terapêutico da cannabis/canabinoides para tratamento de dor crônica em adultos, embora observando limitações na pesquisa disponível. BioInfo Brasil
  • Revisões sistemáticas e Cochrane: algumas revisões (ex.: Cochrane sobre dor neuropática) apontam falta de evidência robusta para afirmar com segurança que produtos derivados de cannabis funcionam em todos os tipos de dor neuropática — há heterogeneidade entre estudos, curto seguimento e efeitos adversos relatados. Em suma: evidência mista e limitada em qualidade. Cochrane+1
  • Meta-análises contemporâneas: várias meta-análises e revisões mais recentes mostram efeito analgésico pequeno a moderado em algumas síndromes (neuropatia, dor relacionada a esclerose múltipla, dor crônica não-oncológica), mas a relevância clínica desses ganhos é debatida e dependente da formulação (THC vs CBD vs mistura), dose e via de administração. PubMed+1
  • Novas evidências clínicas (estudos recentes): ensaios randomizados maiores e novos compostos estão sendo publicados — alguns mostraram redução estatisticamente significativa da dor (por exemplo, um estudo recente de um extrato com baixo THC mostrou melhora em lombalgia crônica), reforçando a necessidade de acompanhamento da literatura. AP News+1

Interpretação prática: há sinais consistentes de benefício analgésico em algumas populações (especialmente neuropatia e sintomas de esclerose múltipla), porém a qualidade dos estudos, variação de formulações (THC, CBD, nabiximols, dronabinol, nabilona, óleos, fumados, etc.) e os efeitos adversos tornam necessária avaliação caso a caso. acpjournals.org+1


Como a cannabis e derivados atuam na dor — mecanismos biológicos

A ação analgésica dos canabinoides envolve múltiplos alvos e vias:

  1. Sistema endocanabinoide (ECS): o ECS inclui os ligantes endógenos (anandamida, 2-AG), as enzimas sintetizadoras e degradadoras (FAAH, MAGL) e os receptores canabinoides principais CB₁ e CB₂. Esses receptores modulam a liberação de neurotransmissores e a excitabilidade neuronal em centros espinais e supraspinais relacionados à dor. PMC+1
  2. CB₁ (principalmente no sistema nervoso central): ativação reduz liberação pré-sináptica de neurotransmissores excitatórios (ex.: glutamato, substância P), diminuindo transmissão nociceptiva e a sensibilidade à dor. Isto explica efeitos sobre dor neuropática e processos centrais de amplificação da dor. PMC+1
  3. CB₂ (principalmente em células imunes e glia): modula respostas inflamatórias periféricas e centrais; ativação de CB₂ pode reduzir a inflamação neurogênica e a ativação de astrócitos/microglia que mantêm a dor crônica. Nature
  4. Interação com canais e receptores não-canabinoides: canabinoides (e endocanabinoides) interagem com receptores TRPV1 (vaniloides), receptores serotoninérgicos, GPR55 e outros, contribuindo para analgesia e efeitos sobre sono e humor que indiretamente modulam a dor. MDPI+1
  5. Modulação das vias descendentes inibitórias: canabinoides podem facilitar circuitos descendentes que suprimem a transmissão nociceptiva espinhal (por exemplo via núcleos periaquedutais), aumentando o limiar de dor. Frontiers
  6. Alvo enzimático (terapêutica indireta): inibidores de FAAH ou MAGL aumentam níveis endógenos de endocanabinoides, oferecendo uma abordagem alternativa para analgesia sem necessarily aumentar THC exógeno — área ativa de pesquisa farmacológica. Nature

Esses mecanismos combinados (neuronal + inflamatório + modulador de humor/sono) ajudam a explicar porque alguns pacientes relatam melhora de dor, sono e função com canabinoides. PMC+1


Formas farmacológicas e diferenças relevantes

  • THC (tetraidrocanabinol): psicoativo; analgesia mediada por CB₁/CB₂, mas com risco de efeitos centrais (sedação, alteração cognitiva, ansiedade).
  • CBD (canabidiol): não claramente psicoativo; modula múltiplos alvos (TRPV1, 5-HT1A, enzimas) e pode complementar efeitos analgésicos/antiinflamatórios, além de atenuar alguns efeitos adversos do THC.
  • Nabiximols (spray oromucosal — ex.: Sativex): mistura THC:CBD usada em alguns países; estudos mostram eficácia em esclerose múltipla e dor neuropática em subgrupos.
  • Dronabinol/nabilona: análogos sintéticos do THC usados em alguns contextos; evidência variável.
  • Óleos, extratos full-spectrum, inalação (vapor/fumar): potência, tempo de início e perfil de efeitos adversos diferem bastante entre vias. PubMed+1

Riscos e efeitos adversos

  • Efeitos agudos: tontura, sonolência, náusea, boca seca, alteração psicomotora, ansiedade/paranoia (mais com THC).
  • Riscos a médio/longo prazo: impacto cognitivo (especialmente em uso precoce/longo), dependência/cannabis use disorder em subgrupos, interações medicamentosas (p.ex. via CYP450), e possíveis efeitos psiquiátricos em indivíduos suscetíveis. BioInfo Brasil+1
  • Estudos também ressaltam taxas de abandono por efeitos adversos em alguns ensaios (p.ex., tontura, náusea) — portanto monitorização é necessária. AP News+1

O que dizem as diretrizes práticas (resumo para clínicos)

  • Avaliar caso a caso: considerar cannabis/canabinoides quando terapias convencionais (fisioterapia, antidepressivos/gabapentinoides para dor neuropática, analgésicos) não forem eficazes ou forem mal toleradas. acpjournals.org
  • Escolher formulação com base na evidência e no perfil de risco: p.ex. em neuropatia ou esclerose múltipla, exames apontam benefício em certas formulações (nabiximols, extratos padronizados) mais do que uso empírico de produtos não padronizados. Cochrane+1
  • Princípio “start low, go slow”: iniciar com dose baixa, titrar lentamente; monitorar sono, função cognitiva, sinais de abuso e efeitos adversos.
  • Contraindicações e precauções: história de psicose, gravidez, adolescência (cérebro em desenvolvimento), funções ocupacionais críticas (ex.: motoristas) exigem maior cautela. BioInfo Brasil

Limitações da evidência e prioridades de pesquisa

  • Muitas séries e ensaios são pequenos, heterogêneos (doses, formulações, vias) e com seguimento curto. Há necessidade de ensaios randomizados maiores, padronizados e de longo prazo para definir eficácia clínica relevante, profilaxia de riscos e subgrupos que mais se beneficiam. Revisões recentes e estudos emergentes (incluindo ensaios de novos extratos) estão sendo publicados e podem atualizar essas conclusões. acpjournals.org+1

Conclusão prática (para pacientes e médicos)

A literatura científica indica potencial benefício dos canabinoides para alguns tipos de dor crônica (especialmente neuropática e em algumas condições como esclerose múltipla), mas a evidência não é uniforme: o benefício tende a ser pequeno a moderado, e existe risco de efeitos adversos. Decisões devem ser individualizadas, baseadas em avaliação de risco/benefício, em preferência do paciente e na legislação/registro local de produtos. Acompanhar novos estudos (ensaios maiores e revisões atualizadas) é essencial, pois o campo tem evoluído rapidamente. BioInfo Brasil+2acpjournals.org+2


Leituras e referências selecionadas (para aprofundar)

  1. The Health Effects of Cannabis and Cannabinoids: The Current State of Evidence and Recommendations for Research — National Academies (2017). BioInfo Brasil
  2. Cochrane Review — Cannabis-based medicines for chronic neuropathic pain in adults (sumário e evidência). Cochrane
  3. McDonagh MS et al., Cannabis-Based Products for Chronic Pain: A Systematic Review (ACP/2022 — revisão contemporânea). acpjournals.org
  4. Finn DP et al., Cannabinoids, the endocannabinoid system and pain — revisão sobre mecanismos (2021). PMC
  5. Vučković S et al., Cannabinoids and Pain: New Insights From Old Molecules — revisão farmacológica (Frontiers, 2018). Frontiers
  6. Aviram J, Samuelly-Leichtag G. Efficacy of Cannabis-Based Medicines for Pain Management — revisão (2017). PubMed
  7. Notícia sobre ensaio clínico recente (Nature / cobertura AP) mostrando redução de dor lombar com extrato padronizado (2025). AP News+1